O Enquadramento Jurídico do Trabalho Intermitente na Era das Plataformas Digitais
A dinâmica das relações laborais sofreu mutações profundas na última década, impulsionada majoritariamente pela revolução tecnológica e pela necessidade de flexibilização das normas juslaborais. O advento da Lei 13.467/2017, conhecida como a Reforma Trabalhista, introduziu no ordenamento jurídico brasileiro a figura do contrato de trabalho intermitente. Esta modalidade contratual surgiu como uma tentativa legislativa de formalizar o “bico” e reduzir a informalidade, mas sua aplicação prática e sua coexistência com novas formas de prestação de serviço, especialmente aquelas mediadas por aplicativos, geram debates acalorados na doutrina e na jurisprudência.
Para o advogado trabalhista e para o estudioso do Direito, compreender a natureza jurídica do trabalho intermitente não é apenas uma questão de exegese legislativa, mas uma necessidade premente para a consultoria preventiva e para o contencioso estratégico. A fronteira entre a autonomia total, a subordinação clássica e as zonas cinzentas da parassubordinação exige um olhar técnico apurado sobre os dispositivos da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
A Definição Legal e os Requisitos do Contrato Intermitente
O contrato de trabalho intermitente encontra sua base legal no artigo 443, § 3º, da CLT. O legislador definiu essa modalidade como aquela em que a prestação de serviços, com subordinação, não é contínua. Ocorrendo com alternância de períodos de prestação de serviços e de inatividade, determinados em horas, dias ou meses, independentemente do tipo de atividade do empregado e do empregador, excetuam-se apenas os aeronautas, regidos por legislação própria.
A característica central que difere o intermitente do contrato padrão por prazo indeterminado é a descontinuidade da prestação laboral aliada à imprevisibilidade da convocação. No entanto, é crucial notar que a subordinação jurídica, elemento fático-jurídico essencial da relação de emprego conforme o artigo 3º da CLT, permanece presente. O trabalhador intermitente é um empregado, não um autônomo. Ele está sujeito ao poder diretivo do empregador durante o período de atividade.
Para que este contrato seja válido, o artigo 452-A da CLT impõe requisitos formais rigorosos. O contrato deve ser necessariamente celebrado por escrito e deve conter especificamente o valor da hora de trabalho, que não pode ser inferior ao valor horário do salário mínimo ou àquele devido aos demais empregados do estabelecimento que exerçam a mesma função. A ausência dessas formalidades pode levar à descaracterização do contrato intermitente, atraindo a nulidade da modalidade e o reconhecimento de um contrato de trabalho padrão, com todas as verbas decorrentes da continuidade.
Muitos profissionais do Direito ainda encontram dificuldades em diferenciar a intermitência lícita da fraude à legislação trabalhista. Para dominar as nuances da elaboração e análise destes instrumentos, o estudo aprofundado em Advocacia Trabalhista: Contratos de Trabalho torna-se uma ferramenta indispensável para mitigar riscos de passivos trabalhistas elevados.
A Dinâmica da Convocação e a Recusa
Um dos pontos mais sensíveis do regime intermitente reside na mecânica da convocação. A lei estipula que o empregador deve convocar o empregado por qualquer meio de comunicação eficaz, informando qual será a jornada, com pelo menos três dias corridos de antecedência. O empregado, por sua vez, tem o prazo de um dia útil para responder ao chamado.
O silêncio do empregado é interpretado legalmente como recusa. Aqui reside um ponto de distinção fundamental em relação à subordinação clássica: a possibilidade de recusa. No contrato de trabalho padrão, a recusa injustificada ao trabalho pode configurar insubordinação ou desídia. No contrato intermitente, a recusa é um direito potestativo do trabalhador, que não descaracteriza a subordinação jurídica inerente ao contrato quando o serviço é efetivamente aceito e prestado.
Essa flexibilidade, contudo, gera complexidade na gestão de recursos humanos e na própria interpretação judicial sobre a exclusividade. O trabalhador intermitente pode manter contratos com múltiplos empregadores simultaneamente, o que reforça a natureza não exclusiva do vínculo, mas exige atenção redobrada quanto a conflitos de agenda e segredos de negócio.
A Subordinação Algorítmica e o Trabalho em Plataformas
Paralelamente à regulamentação do trabalho intermitente, o mercado de trabalho foi inundado pelo modelo da “gig economy” ou economia de bicos, operacionalizada por plataformas digitais. A questão jurídica que se impõe é se a relação entre o prestador de serviço e a plataforma se enquadra nos moldes do artigo 3º da CLT ou se constitui uma relação de natureza civil/comercial.
A doutrina moderna tem desenvolvido o conceito de “subordinação algorítmica”. Diferente da subordinação clássica, onde há ordens diretas de um preposto humano, a subordinação algorítmica ocorre através do controle telemático, da vigilância constante por GPS, do sistema de avaliações e punições (bloqueios ou desligamentos) geridos por inteligência artificial.
Para uma parcela dos juristas e magistrados, esse controle configura a subordinação estrutural e jurídica necessária para o reconhecimento do vínculo empregatício. Argumenta-se que a plataforma não é mera intermediária, mas sim organizadora dos fatores de produção, inserindo o trabalhador em sua dinâmica operacional.
Por outro lado, as empresas defendem a tese da autonomia, sustentando que o trabalhador tem liberdade para se conectar quando quiser, aceitar ou recusar corridas/entregas e trabalhar para concorrentes. Essa liberdade de conexão e desconexão aproxima-se, em tese, da lógica da intermitência, onde a atividade não é contínua.
A Convergência entre Intermitência e Plataformas
Diante do impasse sobre o reconhecimento de vínculo empregatício pleno nas plataformas, surge a discussão sobre a aplicabilidade do contrato de trabalho intermitente como uma solução jurídica viável ou como um termo de comparação analítica.
A figura do trabalho intermitente possui pontos de contato com o trabalho em plataformas. Em ambos, existe a alternância entre atividade e inatividade. Em ambos, a remuneração é atrelada à produção ou ao tempo efetivamente trabalhado, sem a garantia de um salário fixo mensal se não houver serviço. Em ambos, existe, teoricamente, a possibilidade de recusar o trabalho (no intermitente, recusar a convocação; na plataforma, rejeitar a tarefa).
Entretanto, a transposição automática do regime intermitente para as plataformas digitais enfrenta obstáculos técnicos e dogmáticos severos. O primeiro deles é a formalidade. Como mencionado, o contrato intermitente exige forma escrita e registro em Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS). As plataformas operam sob a lógica de “Termos e Condições de Uso”, sem a solenidade contratual trabalhista.
O Debate sobre a Precarização e a Segurança Jurídica
A aplicação do modelo intermitente às plataformas poderia, em tese, garantir direitos previdenciários e trabalhistas básicos (como férias e 13º proporcionais, FGTS) que hoje inexistem para os autônomos digitais. Contudo, críticos apontam que isso poderia institucionalizar uma precarização, dado que a renda do trabalhador intermitente é incerta e, muitas vezes, inferior ao salário mínimo mensal, dependendo do volume de convocações.
Além disso, há a questão da onerosidade e dos custos de transação. O modelo de negócios das plataformas baseia-se na redução extrema de custos fixos. A formalização via contrato intermitente, embora retire o peso do salário fixo nos momentos de ociosidade, impõe encargos sociais e obrigações acessórias que o modelo de “parceria” comercial visa evitar.
Do ponto de vista da advocacia corporativa, a recomendação cautelosa envolve a análise do grau de controle exercido. Se a plataforma pune a recusa, direciona o modo de fazer, exige uso de uniformes e fiscaliza a jornada, aproxima-se do vínculo empregatício clássico. Se a liberdade é plena, aproxima-se do autônomo. O contrato intermitente surge como uma “via do meio” legislada, mas que requer ato de vontade expresso entre as partes para existir validamente no mundo jurídico.
Aspectos Processuais e o Ônus da Prova
No contencioso trabalhista envolvendo essas matérias, a distribuição do ônus da prova é vital. Quando o trabalhador pleiteia o vínculo, e a empresa admite a prestação de serviços, mas alega que esta se deu de forma autônoma ou eventual, o ônus da prova inverte-se, cabendo à empresa provar a ausência dos requisitos do artigo 3º da CLT.
No caso específico da alegação de contrato intermitente tácito, a tese é frágil, pois a lei exige a forma escrita. Portanto, não se presume trabalho intermitente; ou ele é formalmente contratado, ou a descontinuidade fática pode ser interpretada pelo juízo como um contrato padrão onde o empregador falhou em fornecer trabalho, devendo pagar pelos tempos à disposição.
O tempo à disposição é outro conceito chave alterado pela Reforma. No contrato intermitente, o período de inatividade não é considerado tempo à disposição. Já no trabalho padrão, o tempo em que o empregado aguarda ordens é computado na jornada. Nas plataformas, o tempo “logado” sem receber chamadas é o grande limbo jurídico: é tempo à disposição ou mera expectativa de contratualidade?
A jurisprudência dos Tribunais Regionais e do Tribunal Superior do Trabalho (TST) ainda oscila. Enquanto algumas turmas reconhecem o vínculo com base na subordinação algorítmica, outras negam com base na autonomia da gestão da jornada. A tese de que se trata de uma nova forma de trabalho intermitente ainda carece de sedimentação jurisprudencial, sendo muitas vezes utilizada mais como argumento de lege ferenda (lei que deve ser criada) do que de lege lata (lei existente).
Perspectivas Futuras para a Advocacia
O cenário atual exige que o operador do Direito abandone o maniqueísmo. Não se trata apenas de “empregado versus autônomo”. Estamos diante da necessidade de categorizar relações complexas. A advocacia preventiva deve focar na clareza contratual. Para empresas que desejam utilizar a mão de obra intermitente com segurança, a estrita observância do artigo 452-A da CLT é inegociável.
Para os advogados de reclamantes, o desafio é demonstrar que a realidade fática supera a nomenclatura dada à relação. Se um trabalhador intermitente é convocado todos os dias, cumpre horário fixo e não pode recusar chamados sem punição, o contrato intermitente é nulo, configurando fraude. O princípio da primazia da realidade sobre a forma continua sendo a pedra angular do Direito do Trabalho brasileiro.
A compreensão profunda desses institutos não se adquire apenas com a leitura seca da lei, mas com o estudo da dogmática e das tendências dos tribunais superiores. A especialização é o diferencial que separa o advogado que apenas repete teses daquele que constrói soluções jurídicas robustas.
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Insights Sobre o Tema
1. A Formalidade como Escudo: O contrato de trabalho intermitente é um contrato solene. A falta de registro escrito ou a ausência de estipulação prévia do valor-hora não gera apenas uma irregularidade administrativa, mas pode atrair a nulidade total do regime, convertendo-o em contrato por prazo indeterminado.
2. O Poder da Recusa: A principal distinção fática entre o intermitente e o empregado padrão é o direito de dizer “não” à convocação sem sofrer sanções disciplinares. Se a empresa pune a recusa (formal ou informalmente), desnatura-se o instituto.
3. Subordinação Algorítmica: O conceito de subordinação evoluiu. Não é necessário ter um gerente dando ordens verbais. A gestão por metas, avaliações e algoritmos pode configurar o controle diretivo necessário para o vínculo de emprego.
4. Previdência Social: Um dos maiores riscos do trabalho intermitente (e das plataformas) é o recolhimento previdenciário. Se a renda mensal for inferior ao salário mínimo, o trabalhador deve recolher a diferença complementar, sob pena de aquele mês não contar para a aposentadoria ou carência.
5. Segurança Jurídica vs. Inovação: O Direito do Trabalho vive a tensão entre proteger o hipossuficiente e não sufocar novos modelos de negócio. O contrato intermitente foi uma tentativa legislativa de equilíbrio, mas sua aplicação prática ainda demanda cautela extrema.
Perguntas e Respostas
1. O contrato intermitente pode ser aplicado a qualquer profissão?
Sim, a lei permite a contratação intermitente para qualquer atividade do empregado e do empregador, exceto para os aeronautas, que possuem regulamentação específica. Contudo, a natureza da atividade deve ser compatível com a descontinuidade.
2. O trabalhador intermitente tem direito a férias e 13º salário?
Sim. Ao final de cada período de prestação de serviço, o trabalhador deve receber, proporcionalmente, o repouso semanal remunerado, férias com 1/3, 13º salário e demais verbas legais. O pagamento é imediato e não acumulado para o final do ano.
3. A empresa pode exigir exclusividade do trabalhador intermitente?
Não. A própria natureza do contrato, com períodos de inatividade não remunerados, pressupõe que o trabalhador possa prestar serviços a outros contratantes. Cláusulas de exclusividade em contratos intermitentes são passíveis de nulidade.
4. O que acontece se uma das partes descumprir o acordo após o aceite da convocação?
Conforme o art. 452-A, § 4º da CLT, a parte que descumprir o acordo (empregador que não fornece o trabalho ou empregado que não comparece), sem justo motivo, pagará à outra parte, no prazo de 30 dias, multa de 50% da remuneração que seria devida.
5. Existe vínculo de emprego entre motoristas de aplicativo e as plataformas no Brasil hoje?
A questão não está pacificada. Embora existam decisões isoladas reconhecendo o vínculo, o TST e o STF têm proferido decisões recentes afastando o vínculo empregatício, validando formas alternativas de trabalho e contratos civis, desde que não haja fraude ou subordinação clássica comprovada. O tema segue em disputa intensa.
Aprofunde seu conhecimento sobre o assunto na Wikipedia.
Acesse a lei relacionada em [CLT – Consolidação das Leis do Trabalho](http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm)
Este artigo teve a curadoria da equipe da Legale Educacional e foi escrito utilizando inteligência artificial a partir do seu conteúdo original disponível em https://www.conjur.com.br/2025-dez-18/servico-por-aplicativo-e-novo-tipo-de-atividade-intermitente-diz-advogada/.