A Tensão Constitucional na Individualização da Pena: Limites entre a Função Legislativa e a Atuação Jurisdicional
A estrutura do Estado Democrático de Direito baseia-se em pilares fundamentais que garantem a estabilidade jurídica e a proteção dos cidadãos contra o arbítrio. Dentre esses pilares, destaca-se o princípio da separação dos poderes, consagrado no artigo 2º da Constituição Federal de 1988. Este princípio não implica apenas na independência orgânica, mas impõe um respeito rigoroso às competências funcionais de cada poder.
No âmbito do Direito Penal, essa separação ganha contornos dramáticos e complexos quando analisamos a dosimetria da pena. A criação da norma incriminadora é tarefa legislativa, mas a aplicação da sanção ao caso concreto é reserva absoluta de jurisdição. Quando essas linhas se confundem, surge o risco de violação de garantias fundamentais.
O debate sobre até onde o legislador pode ir ao estabelecer critérios para a fixação da pena é antigo e reacende-se constantemente. Profissionais do Direito devem compreender que a lei penal deve ser abstrata e genérica. Tentativas de engessar a atuação do magistrado, transformando-o em mero autômato aplicador de tabelas, ferem a lógica constitucional.
Entender a profundidade dessas competências é essencial para a advocacia criminal e constitucional. A defesa da ordem jurídica exige vigilância contra a usurpação de funções, seja por ativismo judicial ou por excesso legislativo.
O Princípio da Individualização da Pena e suas Três Fases
A Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso XLVI, estabelece que a lei regulará a individualização da pena. Este mandamento não é dirigido apenas ao juiz, mas a todo o sistema punitivo estatal. A doutrina clássica e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal reconhecem que esse princípio se desdobra em três fases distintas: legislativa, judicial e executória.
Na fase legislativa, cabe ao Parlamento selecionar as condutas que merecem a tutela penal e cominar as sanções correspondentes. Aqui, a individualização ocorre de forma abstrata. O legislador define mínimos e máximos de pena, baseando-se em critérios de política criminal e proporcionalidade em relação ao bem jurídico tutelado.
É crucial notar que a fase legislativa deve fornecer balizas, mas não pode suprimir a fase seguinte. Se a lei estabelecer uma pena fixa, sem margem para avaliação das peculiaridades do caso, estará violando o princípio da individualização. A margem de discricionariedade é o oxigênio da justiça no caso concreto.
Para compreender a arquitetura constitucional que sustenta essas fases, o estudo aprofundado é indispensável. A Pós-Graduação em Direito e Processo Constitucional oferece a base teórica necessária para identificar quando o legislador ultrapassa seus limites constitucionais.
A fase judicial, por sua vez, é o momento em que a abstração da lei encontra a realidade dos fatos. O magistrado, valendo-se do sistema trifásico previsto no artigo 68 do Código Penal, deve percorrer um caminho lógico para fixar a sanção justa. É uma atividade intelectiva complexa, que não aceita padronizações matemáticas rígidas impostas externamente.
Por fim, a fase executória ocorre durante o cumprimento da pena. A progressão de regime, o livramento condicional e outros institutos dependem do mérito e do comportamento do apenado. Assim, a individualização perpassa todo o ciclo da persecução penal, garantindo que a sanção seja adequada ao autor e ao fato.
A Usurpação da Função Jurisdicional pelo Legislador
A função típica do Poder Judiciário é dizer o direito no caso concreto. Isso envolve a interpretação da norma e a valoração das provas e circunstâncias. Quando o Poder Legislativo tenta ditar, de forma exaustiva e minuciosa, como o juiz deve valorar cada circunstância judicial, ocorre uma invasão de competência.
O legislador tem o poder de criar as regras do jogo, mas não pode jogar a partida. Ao tentar predeterminar o peso exato de cada agravante, atenuante ou causa de aumento, a lei retira do juiz a capacidade de julgar. Isso transforma o processo penal em uma operação aritmética, ignorando as nuances infinitas da realidade humana.
A doutrina alerta que leis excessivamente casuísticas violam o princípio da impessoalidade. A lei deve ser geral. Quando ela desce a detalhes operacionais da dosimetria, buscando controlar o resultado final do julgamento, ela assume uma natureza administrativa ou jurisdicional anômala.
Essa tentativa de controle legislativo sobre a atividade judicial muitas vezes nasce de um desejo de endurecimento penal ou de desconfiança em relação ao Judiciário. No entanto, o remédio constitucional para decisões judiciais equivocadas é o sistema recursal, não a restrição legislativa da atividade de julgar.
Um advogado criminalista de excelência deve saber identificar essas inconstitucionalidades. A Pós-Graduação em Direito Penal e Processo Penal aprofunda o estudo da dosimetria e das teses defensivas fundamentais para combater aplicações mecânicas da lei penal.
Discricionariedade Regrada vs. Arbitrariedade
É comum confundir a discricionariedade judicial com arbitrariedade. A discricionariedade na dosimetria da pena é regrada. O juiz não é livre para decidir conforme sua vontade pessoal, mas deve fundamentar sua decisão dentro dos limites legais e constitucionais.
O artigo 93, IX, da Constituição exige que todas as decisões judiciais sejam fundamentadas. Isso cria o mecanismo de controle adequado. Se o juiz erra na dosimetria, a fundamentação (ou a falta dela) expõe o erro, permitindo a correção pelos tribunais superiores.
Tentar substituir essa discricionariedade regrada por uma imposição legislativa rígida é um retrocesso. Isso impede que o juiz considere aspectos subjetivos do réu e objetivos do fato que não foram previstos abstratamente pelo legislador. A justiça exige flexibilidade para ser proporcional.
O Princípio da Impessoalidade e a Abstração da Norma
A impessoalidade é um princípio que rege a Administração Pública, mas que também orienta a produção legislativa. As leis não devem ter destinatários determinados nem vislumbrar casos concretos específicos. A generalidade e a abstração são características essenciais da norma jurídica em um Estado de Direito.
Quando o legislador cria normas de dosimetria que visam responder a clamores sociais momentâneos ou a tipos específicos de criminalidade com rigor excessivo e detalhista, ele flerta com a violação da impessoalidade. A lei penal não pode ser um instrumento de vingança privada ou pública institucionalizada através de amarras processuais.
A violação da impessoalidade ocorre quando a norma é desenhada para garantir que determinados réus recebam penas específicas, independentemente da análise judicial de suas condutas. Isso desnatura a função da lei, que é estabelecer um padrão de conduta e uma sanção proporcional, e não ditar a sentença antecipadamente.
Além disso, a abstração da norma garante a segurança jurídica. Se as regras de dosimetria mudam ao sabor das pressões políticas sobre o Legislativo, visando casos específicos, o sistema penal perde sua coerência e previsibilidade. A estabilidade das regras do jogo é vital para a defesa e para a acusação.
A Análise das Circunstâncias Judiciais do Artigo 59 do CP
O artigo 59 do Código Penal é o coração da primeira fase da dosimetria. Ele elenca oito circunstâncias judiciais: culpabilidade, antecedentes, conduta social, personalidade do agente, motivos, circunstâncias e consequências do crime, bem como o comportamento da vítima.
A valoração dessas circunstâncias é eminentemente subjetiva e depende da prova produzida nos autos. O legislador não tem como saber, a priori, qual a intensidade da culpabilidade em um caso futuro de peculato ou roubo. Ele não pode medir a dor das consequências do crime antes que o crime ocorra.
Por isso, qualquer iniciativa legislativa que tente tabelar o “quantum” de aumento ou diminuição para cada uma dessas circunstâncias fere a lógica do sistema. A jurisprudência consolidou o entendimento de que a fração de aumento ideal é de 1/8 sobre o intervalo entre a pena mínima e máxima, mas isso é uma construção jurisprudencial, não uma imposição legal rígida.
O magistrado deve ter a liberdade de valorar que, em determinado caso, as consequências foram tão graves que justificam um aumento maior do que o padrão. Ou que, embora presentes maus antecedentes, eles são antigos e de pouca relevância, justificando um aumento menor. Essa sensibilidade é insubstituível.
O Papel dos Freios e Contrapesos
O sistema de “checks and balances” (freios e contrapesos) visa evitar o abuso de poder. O Judiciário controla a constitucionalidade das leis produzidas pelo Legislativo. O Legislativo, por sua vez, define as competências e o orçamento do Judiciário, além de criar as leis que os juízes aplicam.
No entanto, esse sistema de controle recíproco não autoriza a interferência no núcleo essencial das funções. A função jurisdicional é indelegável e inalienável. O Legislativo não pode, a pretexto de regular a aplicação da pena, esvaziar o poder-dever do juiz de individualizar a sanção.
A história do Direito mostra que regimes autoritários tendem a limitar a independência judicial, impondo penas fixas ou obrigatórias para certos delitos. As democracias constitucionais caminham no sentido oposto, valorizando a fundamentação judicial racional e o controle via recursos.
Profissionais do Direito devem estar atentos a projetos de lei e inovações legislativas que, sob o manto da “eficiência” ou do “combate à impunidade”, na verdade subvertem a ordem constitucional e enfraquecem o Poder Judiciário. A defesa das prerrogativas da magistratura é, em última análise, a defesa do cidadão contra o poder punitivo desmedido do Estado.
Proporcionalidade e Razoabilidade
A proporcionalidade é a proibição do excesso. Uma lei que obriga o juiz a aplicar uma pena desproporcional à gravidade concreta do fato é inconstitucional. A dosimetria da pena é o instrumento técnico para alcançar essa proporcionalidade.
Se o legislador retira as ferramentas de calibração das mãos do juiz, o resultado será, inevitavelmente, injustiças em série. Casos leves serão punidos com severidade excessiva, e casos graves podem não receber a resposta adequada se a tabela legislativa for falha. A razoabilidade exige que os meios (a pena) sejam adequados aos fins (retribuição e prevenção), o que só se alcança através da análise caso a caso.
O estudo contínuo é a única forma de navegar por essas complexidades teóricas e práticas. O Direito não é estático, e as tensões entre os poderes exigem um profissional atualizado e crítico.
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Insights Sobre o Tema
* **Reserva de Jurisdição:** A aplicação da pena é atividade exclusiva do Judiciário; tentativas legislativas de microgerenciar esse processo são inconstitucionais.
* **Discricionariedade Vinculada:** O juiz não tem liberdade absoluta, mas deve ter margem de manobra fundamentada para ajustar a pena ao caso concreto.
* **Trifasia Essencial:** O sistema trifásico de Nelson Hungria (Art. 68 CP) é a metodologia técnica que garante a racionalidade da pena, não podendo ser suprimido por tabelas legislativas.
* **Abstração vs. Concretude:** A lei deve ser abstrata para garantir a impessoalidade; a sentença deve ser concreta para garantir a justiça.
* **Controle de Constitucionalidade:** Normas que ferem a individualização da pena são passíveis de controle difuso e concentrado de constitucionalidade.
Perguntas e Respostas
1. O legislador pode fixar penas mínimas e máximas para os crimes?
Sim. Esta é a fase legislativa da individualização da pena. O legislador, dentro de critérios de política criminal, define os limites abstratos da sanção (comina a pena). O que ele não pode fazer é impedir que o juiz transite dentro desses limites com base nas provas do caso concreto.
2. O que caracteriza a violação ao princípio da impessoalidade na esfera legislativa penal?
A violação ocorre quando a lei é criada com o objetivo de atingir pessoas específicas ou casos concretos determinados, perdendo suas características essenciais de generalidade e abstração. Leis “casuísticas” desvirtuam a função legislativa.
3. Qual a diferença entre arbítrio judicial e discricionariedade regrada?
O arbítrio é a decisão baseada apenas na vontade ou capricho do julgador, sem amparo legal. A discricionariedade regrada é a liberdade de escolha entre opções válidas fornecidas pela lei, exigindo-se fundamentação racional e constitucional para a opção escolhida.
4. Por que a fixação de critérios matemáticos rígidos pelo legislador para a dosimetria é criticada?
Porque ela transforma o juiz em um mero aplicador de fórmulas, impedindo a análise das nuances subjetivas e objetivas do caso concreto. Isso fere o princípio da individualização da pena, pois trata de forma igual situações que podem ser materialmente muito distintas.
5. Qual o papel da fundamentação das decisões na dosimetria da pena?
A fundamentação é o mecanismo de controle da atividade jurisdicional. Ela permite que as partes entendam o raciocínio do juiz e exerçam o direito ao recurso. É através da fundamentação que se verifica se a discricionariedade foi exercida dentro dos limites legais e constitucionais.
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Acesse a lei relacionada em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm
Este artigo teve a curadoria da equipe da Legale Educacional e foi escrito utilizando inteligência artificial a partir do seu conteúdo original disponível em https://www.conjur.com.br/2025-dez-19/pl-da-dosimetria-viola-impessoalidade-e-usurpa-funcao-do-judiciario-dizem-especialistas/.