O Tribunal do Júri representa um dos institutos mais complexos e fascinantes do ordenamento jurídico brasileiro. Diferente do juízo togado, onde a fundamentação das decisões é um imperativo constitucional previsto no artigo 93, IX, da Constituição Federal, o Conselho de Sentença decide com base na íntima convicção. Os jurados não precisam motivar seus votos. Eles respondem a quesitos de forma sigilosa, guiados por sua consciência e pelos ditames da justiça.
Essa característica peculiar do sistema de votação — a ausência de fundamentação explícita — impõe um rigor absoluto sobre a “higidez” dos debates. Se não sabemos *por que* o jurado condenou, precisamos ter controle total sobre *o que* ele ouviu. O objetivo é evitar que elementos estranhos ao fato, meramente emocionais ou preconceituosos, contaminem a imparcialidade do conselho.
Nesse cenário, um dos pontos de maior tensão processual é a utilização dos antecedentes criminais do réu (a “folha corrida”) como argumento retórico pela acusação. Não se trata apenas de uma violação ética, mas de um debate profundo sobre a taxatividade do Código de Processo Penal e a dogmática do Direito Penal do Autor.
Direito Penal do Fato: A Barreira contra a Estigmatização
Para atuar no Júri com excelência, é preciso ir além do texto da lei e dominar a teoria do delito. O sistema democrático adota o Direito Penal do Fato. O indivíduo deve ser julgado por uma conduta específica realizada no tempo e no espaço, e não por sua biografia ou personalidade.
Quando a acusação utiliza a vida pregressa do réu como motor para a condenação atual (“ele já matou antes, logo, matou agora”), ela incide no vedado Direito Penal do Autor. Substitui-se a prova da autoria do crime em julgamento pela probabilidade baseada no caráter do agente.
Se o Conselho de Sentença condenar o réu baseando-se na ideia de que “quem faz uma vez, faz sempre”, estará ferindo de morte a presunção de inocência referente ao fato atual. Essa lógica pertence ao senso comum e deve ser combatida com rigor técnico.
A Armadilha Técnica do Artigo 478 do CPP
Aqui reside um ponto onde muitos advogados falham por imprecisão técnica. O artigo 478 do Código de Processo Penal (CPP) estabelece vedações expressas durante os debates (menção à pronúncia, uso de algemas, silêncio do réu).
Atenção: A leitura de antecedentes criminais não está literalmente descrita no rol do artigo 478.
Por isso, o advogado que impugna a leitura gritando apenas “Violação ao artigo 478!” corre o risco de ter seu pedido indeferido por um Juiz Presidente legalista, sob o argumento de que o rol é taxativo. A defesa técnica deve argumentar que, embora não esteja explícita na letra da lei, a proibição decorre de uma interpretação sistemática e constitucional, alinhada à jurisprudência dos Tribunais Superiores que veem o rol como exemplificativo em situações de manifesto prejuízo à imparcialidade.
O argumento deve ser construído sobre a vedação ao uso de elementos estranhos aos autos para exercer uma influência indevida, violando a plenitude de defesa. Para dominar essas nuances hermenêuticas, a Pós-Graduação em Tribunal do Júri e Execução Penal oferece o aprofundamento necessário para não ser surpreendido pelo formalismo judicial.
O Paradoxo da Prova do Prejuízo (Súmula 523 do STF)
A jurisprudência brasileira, aplicando o princípio pas de nullité sans grief, exige a demonstração de prejuízo concreto para anular o julgamento. Contudo, no Tribunal do Júri, isso cria uma “prova diabólica” para a defesa.
Como demonstrar que a leitura dos antecedentes foi decisiva para a condenação se o voto é sigiloso e imotivado?
- Se o jurado vota “sim” na sala secreta, ninguém sabe se ele o fez pela prova pericial ou porque ficou impressionado com a ficha criminal do réu.
- Ao exigir a prova do prejuízo concreto, os Tribunais muitas vezes ignoram a realidade psicológica do julgamento leigo.
O advogado combativo deve sustentar que, no procedimento do Júri, a nulidade decorrente da estigmatização pelos antecedentes deve ser considerada absoluta ou, no mínimo, de prejuízo presumido, pois é impossível sondar a mente do jurado.
A Doutrina do “Door Opening”: O Risco da Defesa
Um aspecto tático vital, muitas vezes esquecido, é a doutrina do Door Opening (abertura de portas). A vedação à menção dos antecedentes visa proteger o réu. Contudo, essa proteção não é um escudo absoluto se a própria defesa trouxer o “caráter” para o jogo.
Se o advogado de defesa, em sua fala, argumentar que o réu é um “bom pai de família”, um “cidadão de bem” ou que “nunca se envolveu em problemas”, ele está colocando a biografia do acusado em pauta. Nesse momento, ele autoriza a acusação a apresentar os antecedentes criminais para rebater a alegação da defesa (impugnação de caráter).
Portanto, a estratégia de “santificar” o réu pode ser um tiro no pé. O advogado deve focar na prova do fato, evitando abrir flancos que permitam ao Ministério Público explorar licitamente o passado do acusado.
O Argumento de Autoridade e a Paridade de Armas
O conceito de “argumento de autoridade” ocorre quando uma das partes invoca o peso do Estado para validar sua tese, dispensando a análise crítica das provas. Quando o Promotor exibe uma condenação anterior e diz “O Estado-Juiz já disse que este homem é perigoso”, ele transfere a responsabilidade da condenação atual para uma certeza pretérita.
Isso desequilibra a paridade de armas. A defesa se vê obrigada a defender o réu não apenas da acusação da denúncia, mas de toda a sua história de vida, algo inviável no tempo restrito dos debates.
Estratégia Processual: O Momento da Arguição
A preclusão no Tribunal do Júri é implacável (Art. 571, VIII, do CPP). Não adianta alegar nulidade apenas em sede de apelação.
O procedimento correto é:
- No exato momento em que a acusação mencionar o antecedente ou puxar a folha penal;
- Interromper imediatamente com um “Pela Ordem”;
- Requerer que o Juiz advirta o Promotor e os Jurados;
- Exigir o registro do protesto em ata, fundamentando na violação da imparcialidade e na vedação ao argumento de autoridade por analogia.
Mesmo que o Juiz indefira, o registro em ata é a condição indispensável para recorrer aos Tribunais Superiores posteriormente.
A Realidade Jurisprudencial: Um Pêndulo
É perigoso acreditar que a tese da vedação está pacificada. A jurisprudência, especialmente no STJ, é oscilante. Enquanto turmas mais garantistas tendem a anular julgamentos onde a ficha criminal foi o argumento central, outras turmas mantêm a condenação se houver outras provas robustas nos autos.
O advogado não pode contar com a sorte. Ele deve estar preparado para o pior cenário, conhecendo profundamente não apenas a lei, mas os precedentes específicos das 5ª e 6ª Turmas do STJ. Para os profissionais que desejam estar sempre atualizados sobre essas oscilações jurisprudenciais, a Pós-Graduação em Advocacia Criminal é a ferramenta ideal para manter a competência técnica afiada.
Conclusão
A utilização dos antecedentes criminais no Tribunal do Júri é um campo minado. Envolve dogmática penal, psicologia judiciária e estratégia processual avançada. O advogado que domina apenas a letra da lei será engolido pela complexidade do plenário. A defesa técnica eficaz exige saber quando calar sobre o caráter do réu para não “abrir a porta”, e quando gritar “pela ordem” para fechar a porta do preconceito trazido pela acusação.
Perguntas e Respostas
1. O artigo 478 do CPP proíbe expressamente a leitura de antecedentes?
Não expressamente. O artigo cita pronúncia, algemas e silêncio. A proibição de antecedentes advém de uma interpretação extensiva e principiológica (imparcialidade e presunção de inocência) adotada por parte da jurisprudência e doutrina.
2. O que é a doutrina do “Door Opening” no Júri?
É o entendimento de que, se a defesa alegar que o réu tem “bom comportamento” ou “vida ilibada”, ela autoriza a acusação a usar os antecedentes criminais para provar o contrário, perdendo-se o direito de alegar nulidade nesse ponto.
3. Como provar prejuízo se o voto dos jurados é sigiloso?
Essa é a “prova diabólica” do Júri. A defesa deve argumentar que o prejuízo é presumido (nulidade absoluta) dada a impossibilidade de saber a motivação dos jurados, embora muitos tribunais ainda exijam demonstração de que o argumento foi determinante.
4. Qual o momento para alegar a nulidade?
Imediatamente após a menção indevida, durante a sessão de julgamento, conforme o art. 571, VIII do CPP. O protesto deve constar em ata sob pena de preclusão.
5. A jurisprudência sobre o tema é pacífica?
Não. Há oscilação nos Tribunais Superiores. Algumas decisões anulam o júri pelo simples uso dos antecedentes como argumento de retórica; outras mantêm o veredito se houver outras provas de autoria independentes.
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Acesse a lei relacionada em Código de Processo Penal – Art. 478
Este artigo teve a curadoria da equipe da Legale Educacional e foi escrito utilizando inteligência artificial a partir do seu conteúdo original disponível em https://www.conjur.com.br/2025-dez-07/tj-pr-veta-uso-de-antecedentes-e-documentos-de-outra-acao-penal-como-argumento-de-autoridade-perante-o-juri/.