A Tutela Penal do Estado Democrático de Direito e a Responsabilidade em Crimes Multitudinários
A proteção jurídica das instituições democráticas sofreu uma alteração paradigmática no ordenamento brasileiro recente. Com a revogação da antiga Lei de Segurança Nacional e a inclusão do Título XII no Código Penal pela Lei nº 14.197/2021, o legislador estabeleceu novos contornos para os crimes contra o Estado Democrático de Direito. Para o profissional da advocacia, compreender a dogmática por trás desses tipos penais é essencial, não apenas pela gravidade das penas abstratamente cominadas, mas pela complexidade probatória que envolve a caracterização do dolo específico exigido por essas normas.
A arquitetura típica desses delitos exige uma análise minuciosa dos elementos subjetivos e objetivos. Não se trata mais de proteger a “segurança nacional” sob uma ótica de doutrina militar, mas de tutelar o funcionamento livre e desimpedido dos Poderes da União e a própria soberania popular. O advogado criminalista deve estar atento à distinção técnica entre os diversos tipos penais inseridos neste título, pois a confusão entre as figuras delitivas pode resultar em estratégias defensivas ineficazes ou em acusações tecnicamente imprecisas.
Análise Dogmática dos Crimes Contra as Instituições
O cerne da nova legislação reside fundamentalmente em dois artigos que, embora semelhantes, possuem objetividades jurídicas distintas: a Abolição Violenta do Estado Democrático de Direito (art. 359-L) e o Golpe de Estado (art. 359-M). A distinção técnica entre ambos é sutil, porém determinante para a tipificação correta da conduta. No crime de abolição violenta, o núcleo do tipo é “tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais”. Trata-se de um crime formal e de atentado, onde a consumação se dá com a prática do ato executório violento, independentemente da obtenção do resultado naturalístico.
Por outro lado, o crime de Golpe de Estado, previsto no artigo 359-M, possui como conduta nuclear “tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído”. Aqui, o ataque é direcionado especificamente contra a investidura dos governantes eleitos e a manutenção de seus mandatos. A defesa técnica deve observar que ambos os crimes exigem o emprego de violência ou grave ameaça. Sem esses elementos normativos, a conduta pode ser atípica ou recair em figuras penais menos gravosas.
A compreensão profunda desses tipos penais exige um estudo continuado. Para os profissionais que buscam excelência técnica nesta área, a especialização é o caminho natural. Uma Pós-Graduação em Direito Penal e Processo Penal oferece o arcabouço teórico necessário para manejar teses complexas envolvendo crimes contra a administração e a soberania nacional.
Outro ponto nevrálgico é a classificação desses delitos como crimes de forma livre, plurissubsistentes e que admitem a tentativa (embora a própria tipificação já contemple a tentativa como elemento do tipo, o que gera debates doutrinários sobre a possibilidade de tentativa da tentativa, majoritariamente rejeitada). A materialidade, em muitos casos, não reside na destruição física de bens, mas na potencialidade lesiva da conduta organizada para abalar as estruturas institucionais.
A Teoria dos Crimes de Multidão e a Individualização da Conduta
Um dos maiores desafios processuais em casos que envolvem ataques às instituições democráticas é a questão da autoria em contextos de multidão. O Direito Penal moderno rejeita a responsabilidade penal objetiva; portanto, a simples presença física em um local onde crimes estão sendo cometidos não deveria, em tese, acarretar condenação automática. No entanto, a teoria dos “crimes multitudinários” ou a responsabilidade por autoria colateral em contextos de violência coletiva traz nuances importantes.
Em cenários de tumulto e violência generalizada contra as instituições, a jurisprudência e a doutrina têm se debruçado sobre o conceito de liame subjetivo. Quando centenas ou milhares de pessoas agem com um propósito comum — no caso, a derrubada de um governo ou o fechamento de um poder constituído —, a contribuição de cada indivíduo para o resultado final é avaliada de forma global. A adesão voluntária e consciente à turba, ciente dos propósitos violentos do grupo, pode configurar a coautoria ou participação, a depender do domínio do fato que o agente possui.
O desafio para a defesa técnica reside em demonstrar a ausência de dolo específico ou a falta de adesão à vontade coletiva criminosa. Argumentos baseados na mera curiosidade ou na ausência de atos violentos diretos (como a depredação de patrimônio) são frequentemente confrontados com a teoria do domínio funcional do fato, onde quem dá suporte moral ou numérico à massa encoraja a ação dos executores diretos da violência.
O Concurso de Crimes e a Associação Criminosa Armada
A capitulação legal nesses eventos raramente se isola em um único tipo penal. É frequente a aplicação do concurso material de crimes, somando-se as penas dos delitos contra o Estado Democrático de Direito com outras infrações penais correlatas. Uma das figuras mais comuns nesses contextos é a Associação Criminosa Armada, prevista no artigo 288, parágrafo único, do Código Penal.
Para a configuração deste delito, exige-se a estabilidade e a permanência da reunião de três ou mais pessoas com o fim de cometer crimes. A presença de armas, sejam elas de fogo ou impróprias (objetos utilizados com potencial letal ou lesivo), aumenta a pena significativamente. A defesa deve atentar para o requisito da estabilidade. Reuniões eventuais ou momentâneas, ainda que para a prática de crimes, configuram concurso de agentes e não necessariamente associação criminosa, salvo se comprovado o vínculo duradouro entre os envolvidos.
Além disso, é comum a imputação de Dano Qualificado (art. 163, parágrafo único, do CP), especialmente quando há deterioração de patrimônio da União ou de bens de valor histórico e artístico. Neste ponto, a perícia técnica assume papel central. A valoração do dano e a impossibilidade de reparação de bens tombados são circunstâncias que influenciam na dosimetria da pena e na fixação de valores para reparação cível ex delicto.
A intersecção entre as normas penais e os princípios constitucionais é evidente. O advogado deve dominar não apenas o Código Penal, mas também as bases do Direito Constitucional, pois a interpretação da “restrição ao exercício dos poderes constitucionais” é uma matéria eminentemente de direito público.
Competência e Processo Penal Originário
A definição da competência para julgamento de crimes contra o Estado Democrático de Direito é outro tópico de alta relevância técnica. Embora a regra geral de competência seja determinada pelo local da infração ou pelo domicílio do réu, a conexão probatória ou teleológica pode atrair a competência para tribunais superiores, especialmente quando há envolvimento de autoridades com prerrogativa de foro ou quando os atos atentam diretamente contra a cúpula dos Poderes da União.
O Supremo Tribunal Federal, como guardião da Constituição, tem afirmado sua competência para processar e julgar atos que visem a sua própria extinção ou a anulação de seus julgados por meio da força. A Súmula 704 do STF estabelece que não viola as garantias do juiz natural, da ampla defesa e do devido processo legal a atração de processo de corréu ao foro por prerrogativa de função de um dos denunciados.
Esse fenômeno processual exige do advogado uma atuação diferenciada, habituado ao regimento interno da Corte Suprema e às particularidades do processo penal originário. As fases de instrução, a realização de audiências de custódia e as sustentações orais seguem ritos que, embora baseados no Código de Processo Penal, possuem dinâmicas próprias no âmbito dos tribunais superiores.
A Dosimetria da Pena em Crimes Políticos e Institucionais
A fixação da pena nesses casos costuma ser severa, dado o alto grau de reprovabilidade da conduta e o bem jurídico tutelado — a própria existência do regime democrático. Na primeira fase da dosimetria, as circunstâncias judiciais do artigo 59 do Código Penal são frequentemente valoradas de forma negativa. As consequências do crime, que podem incluir instabilidade política, econômica e social, além dos danos materiais vultosos, pesam contra o réu.
No concurso de crimes, a regra do cúmulo material (art. 69 do CP) é a norma. Isso significa que as penas de cada delito (abolição violenta, golpe de estado, dano qualificado, associação criminosa) são somadas, o que pode resultar em condenações a longos anos de reclusão em regime inicial fechado. A defesa deve trabalhar meticulosamente na análise de eventuais atenuantes, como a confissão espontânea, ou na desclassificação para crimes de menor potencial ofensivo, buscando o reconhecimento de crime único ou concurso formal quando cabível.
Outro aspecto relevante é a responsabilidade civil solidária. Em condenações dessa natureza, é comum a fixação de valor mínimo para reparação dos danos causados, que pode atingir cifras milionárias quando envolve patrimônio público histórico. Essa obrigação de reparar o dano é efeito automático da condenação, mas o quantum deve ser debatido sob o crivo do contraditório.
Conclusão
A defesa e a acusação em crimes contra o Estado Democrático de Direito exigem um nível de preparo técnico superior. Não se trata apenas de aplicar a lei penal comum, mas de interpretar normas que protegem a estrutura do Estado. A compreensão da distinção entre os tipos penais, a correta individualização da conduta em crimes multitudinários e o domínio das regras de competência e conexão são ferramentas indispensáveis para o jurista contemporâneo. O cenário jurídico atual demanda profissionais que transcendam o básico e mergulhem na complexidade dogmática desses novos tempos.
Quer dominar a dogmática dos crimes contra o Estado e se destacar na advocacia criminal de alto nível? Conheça nosso curso Pós-Graduação em Direito Penal e Processo Penal 2025 e transforme sua carreira com conhecimento aprofundado.
Insights sobre o Tema
A análise aprofundada dos crimes contra o Estado Democrático de Direito revela que a legislação brasileira migrou de um modelo de segurança nacional focado no “inimigo interno” para um modelo de defesa das instituições e do processo democrático. Isso altera fundamentalmente a estratégia jurídica. A prova do dolo específico (intenção de abolir o Estado ou depor o governo) torna-se a pedra angular do processo. Para a defesa, o foco deve ser desvincular o agente da intenção macro (golpista), tentando reduzir a conduta a atos isolados de vandalismo ou perturbação, cujas penas são significativamente menores. Para a acusação, o desafio é demonstrar a unidade de desígnios e a adesão subjetiva do indivíduo à massa criminosa.
Perguntas e Respostas
1. Qual é a principal diferença entre os crimes de Abolição Violenta do Estado Democrático de Direito e Golpe de Estado?
A diferença reside na finalidade específica (dolo) e no objeto do ataque. A Abolição Violenta (art. 359-L) visa impedir ou restringir o exercício dos poderes constitucionais, atacando as instituições em si. Já o Golpe de Estado (art. 359-M) tem como objetivo depor o governo legitimamente constituído, atacando a investidura dos mandatários.
2. Como funciona a responsabilidade penal em crimes cometidos por multidões?
Em crimes multitudinários, não se aplica a responsabilidade penal objetiva. Contudo, utiliza-se a teoria do vínculo subjetivo, onde a adesão voluntária e consciente aos atos violentos da massa pode configurar coautoria. A acusação deve provar que o indivíduo, com sua presença e atos, aderiu ao propósito criminoso coletivo, contribuindo para o resultado ou encorajando a ação do grupo.
3. É possível aplicar o princípio da insignificância em crimes contra o Estado Democrático de Direito?
A doutrina e a jurisprudência majoritárias entendem que não. O bem jurídico tutelado é a estabilidade do regime democrático e das instituições, considerado indisponível e de altíssimo valor social. A conduta, ainda que não gere grande dano patrimonial individualmente, possui alta reprovabilidade e periculosidade abstrata, afastando a bagatela.
4. Por que o Supremo Tribunal Federal (STF) julga réus sem prerrogativa de foro nesses casos?
O STF atrai a competência baseando-se na conexão probatória ou instrumental com investigados que possuem foro por prerrogativa de função, conforme o art. 76 do Código de Processo Penal. Além disso, quando os atos atentam diretamente contra a própria Corte e seus membros, o Regimento Interno do STF prevê competência para processar os fatos ocorridos em suas dependências ou contra sua integridade.
5. O que caracteriza a Associação Criminosa Armada neste contexto?
Caracteriza-se pela união estável e permanente de três ou mais pessoas com o fim específico de cometer crimes, agravada pelo emprego de armas (art. 288, parágrafo único, do CP). A estabilidade difere do mero concurso de agentes (união eventual). No contexto de atos antidemocráticos, a organização prévia, financiamento e logística podem ser usados como prova dessa estabilidade e permanência.
Aprofunde seu conhecimento sobre o assunto na Wikipedia.
Acesse a lei relacionada em Código Penal
Este artigo teve a curadoria da equipe da Legale Educacional e foi escrito utilizando inteligência artificial a partir do seu conteúdo original disponível em https://www.conjur.com.br/2025-dez-16/supremo-condena-cinco-reus-do-nucleo-2-da-trama-golpista/.