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STJ e Corpos Estranhos: Dano Moral em Alimentos sem Ingestão

Artigo de Direito
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A Responsabilidade Civil e a Presença de Corpos Estranhos em Alimentos: Uma Análise da Evolução Jurisprudencial sobre o Dano Moral

O Direito do Consumidor brasileiro passa por constantes transformações hermenêuticas, especialmente no que tange à interpretação da responsabilidade civil dos fornecedores e fabricantes. Um dos temas mais debatidos e que sofreu uma virada jurisprudencial significativa nos últimos anos diz respeito à presença de corpos estranhos em produtos alimentícios. A questão central que desafia os operadores do Direito não é apenas a existência do defeito, mas a necessidade ou não da ingestão do alimento contaminado para a configuração do dano moral indenizável.

Historicamente, a doutrina e a jurisprudência oscilaram entre a exigência do efetivo consumo — e consequente dano físico ou biológico — e a teoria do risco e da quebra de confiança. Compreender essa nuance é vital para a advocacia contemporânea, pois ela redefiniu os parâmetros de segurança alimentar e as obrigações da cadeia de fornecimento.

O Dever de Segurança e a Teoria da Qualidade no CDC

O Código de Defesa do Consumidor (CDC) adotou, como premissa basilar, a teoria da qualidade, que se desdobra em duas vertentes: a qualidade-adequação e a qualidade-segurança. O produto colocado no mercado de consumo deve, obrigatoriamente, atender às legítimas expectativas do consumidor quanto à sua utilização e fruição.

Quando tratamos de alimentos, a expectativa de segurança é absoluta. Não se admite, em hipótese alguma, que um produto destinado à nutrição humana contenha elementos alienígenas à sua composição, sejam eles biológicos, químicos ou físicos. A presença de um corpo estranho rompe imediatamente com o dever de incolumidade que o fornecedor deve garantir.

A legislação é clara ao estabelecer, em seu artigo 8º, que os produtos e serviços não colocarão em riscos a saúde ou segurança dos consumidores. A violação deste dispositivo, por si só, já constitui um ato ilícito. O debate jurídico aprofunda-se quando analisamos se essa violação, sem o contato físico direto interno (ingestão), gera apenas um prejuízo patrimonial (restituição do valor pago) ou se escala para a esfera extrapatrimonial.

Vício do Produto versus Fato do Produto

Para o advogado que atua na área, a distinção técnica entre vício e fato do produto é crucial. A presença de um corpo estranho, tecnicamente, torna o produto impróprio para o consumo, caracterizando um vício de qualidade, conforme o artigo 18 do CDC. O vício é uma falha intrínseca que atinge a funcionalidade ou o valor do bem.

No entanto, quando esse defeito extrapola a esfera do produto e atinge a incolumidade físico-psíquica do consumidor, estamos diante de um acidente de consumo, ou fato do produto, regido pelo artigo 12 do CDC. A jurisprudência moderna tem entendido que a simples exposição ao risco, gerada pela aquisição de um alimento contaminado, situa-se numa zona cinzenta que une a repugnância (vício grave) ao risco iminente de dano à saúde (potencial fato do produto).

A Superação do Requisito da Ingestão

Durante anos, diversos tribunais estaduais brasileiros firmaram o entendimento de que, sem a ingestão do corpo estranho, não haveria dano moral, configurando-se o episódio como um “mero aborrecimento” do cotidiano. A lógica era puramente naturalística: sem lesão corporal ou intoxicação, não haveria dano indenizável.

Contudo, essa visão reducionista foi paulatinamente superada pela Corte Superior. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) consolidou o entendimento de que a aquisição de produto alimentício contendo corpo estranho, mesmo que não ingerido, dá direito à compensação por danos morais.

A ratio decidendi baseia-se na proteção da saúde e da segurança do consumidor num sentido preventivo e abstrato. A exposição do consumidor a um risco concreto de lesão à sua saúde e a sua integridade física e psíquica é suficiente para caracterizar o dano.

Para entender profundamente como esses direitos são estruturados e fundamentar suas petições com precisão técnica, é recomendável o estudo aprofundado sobre O regime jurídico dos direitos básicos e estudo do art. 6º do Código de Defesa do Consumidor. O domínio desses conceitos fundamentais é o que diferencia uma tese genérica de uma argumentação vencedora nos tribunais superiores.

O Sentimento de Repugnância e a Vulnerabilidade

Um dos pilares para a caracterização do dano moral nesses casos é o impacto psicológico imediato. O Direito não pode ignorar as reações humanas naturais. A descoberta de um inseto, um objeto metálico ou qualquer sujidade em um alimento que estava prestes a ser consumido, ou que já estava sendo consumido (mesmo que a parte contaminada não tenha sido engolida), gera inegável asco, nojo e repugnância.

Esses sentimentos negativos intensos rompem o equilíbrio psicológico do indivíduo. Além disso, há a sensação de impotência e vulnerabilidade diante do processo industrial. O consumidor confia cegamente que os processos de controle de qualidade são eficientes. Quando essa confiança é traída de forma tão visceral, o sistema jurídico deve responder com a reparação civil, que possui, neste caso, também um forte caráter punitivo-pedagógico para a indústria.

A Caracterização do Dano Moral In Re Ipsa?

Há uma discussão doutrinária relevante sobre se este dano seria classificado como in re ipsa (presumido, que independe de prova do sofrimento) ou se necessita de demonstração fática do abalo.

A tendência majoritária atual inclina-se para o reconhecimento de que a simples colocação no mercado de produto com corpo estranho expõe o consumidor a risco. O dano decorre da gravidade do fato em si. A exposição ao risco de consumo de alimento contaminado viola o direito fundamental à alimentação adequada e segura.

No entanto, a advocacia estratégica não deve se apoiar apenas na presunção. É fundamental demonstrar, no caso concreto, as circunstâncias que agravaram a situação. Por exemplo, se o alimento foi servido a uma criança, a um idoso, ou em uma ocasião especial, a gravidade do dano moral pode ser majorada.

O Risco à Saúde como Fator Determinante

O ponto de virada na jurisprudência não foi a repugnância isolada, mas o risco latente. O STJ entende que o defeito de segurança existe a partir do momento em que o produto sai da fábrica.

A “sorte” do consumidor em notar o corpo estranho antes de engoli-lo não pode eximir o fornecedor de sua responsabilidade civil. Se assim fosse, estaríamos premiando a falha industrial com a impunidade apenas porque o consumidor foi diligente ou teve sorte. A responsabilidade do fornecedor é objetiva, fundada no risco do empreendimento.

Aspectos Probatórios na Defesa do Consumidor

Para o profissional do Direito, a instrução probatória nestes casos exige cautela. Embora haja a inversão do ônus da prova (ope judicis ou ope legis, dependendo da interpretação do caso concreto como fato ou vício), o consumidor deve apresentar a prova mínima da verossimilhança de suas alegações.

Isso inclui:
A preservação do produto e do corpo estranho;
Fotografias e vídeos do momento da descoberta, se possível;
A nota fiscal de compra para comprovar a relação de consumo e a data;
Eventuais reclamações feitas ao SAC da empresa ou aos órgãos de proteção (Procon).

Do lado da defesa corporativa, a estratégia foca geralmente na inexistência de defeito (tentativa de provar que o corpo estranho foi inserido após a abertura da embalagem) ou na culpa exclusiva do consumidor/terceiro. A perícia técnica pode ser necessária para determinar se o corpo estranho estava “incrustado” no alimento ou se apresentava características de ter passado pelo processo de cozimento ou industrialização, o que comprovaria a falha na origem.

O Dever de Recall e a Prevenção de Danos Coletivos

A existência de um corpo estranho pode não ser um evento isolado, mas sim um indicativo de falha sistêmica em um lote de produção. Isso atrai a incidência do dever de recall (chamamento dos consumidores), previsto no artigo 10 do CDC.

O advogado deve estar atento a essa dimensão coletiva. Se um caso individual revela um problema de lote, a atuação jurídica pode transbordar para a tutela coletiva, envolvendo o Ministério Público ou associações de consumidores. A omissão do fornecedor em retirar o lote do mercado após a ciência do defeito agrava a conduta e pode influenciar no quantum indenizatório da ação individual, sob a ótica da função dissuasória da responsabilidade civil.

Quantificação do Dano

Não existe uma tabela fixa para danos morais, e o arbitramento judicial varia conforme a região e a gravidade do caso. Contudo, a jurisprudência tem se afastado de valores irrisórios, reconhecendo que a indenização deve ser suficiente para desestimular a reincidência da conduta negligente por parte da indústria alimentícia.

Fatores que influenciam o valor:
A natureza do corpo estranho (insetos e vetores de doenças tendem a gerar indenizações maiores que objetos inanimados inertes);
O grau de risco à saúde que o objeto representava (ex: vidro ou metal cortante);
A conduta da empresa no pós-venda (se prestou assistência imediata ou tratou o consumidor com descaso).

Conclusão

A consolidação do entendimento de que a presença de corpo estranho em alimento gera dano moral, independentemente de ingestão, representa um avanço civilizatório nas relações de consumo. Ela desloca o eixo de proteção do resultado danoso (lesão física) para a prevenção e a garantia da segurança (lesão à confiança e à integridade psíquica).

Para os advogados, este cenário exige uma atualização constante e uma capacidade argumentativa refinada, capaz de demonstrar a violação dos direitos da personalidade para além da materialidade física. A proteção da saúde do consumidor não admite falhas, e o Judiciário tem se mostrado atento para punir a negligência nos processos produtivos.

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Insights sobre o Tema

A responsabilização sem ingestão marca a transição de um Direito de Danos clássico para um Direito de Danos focado na violação de deveres de conduta e proteção da confiança.
A repugnância (asco) ganhou status jurídico autônomo como causadora de sofrimento psíquico passível de reparação.
A teoria do risco do empreendimento é absoluta na indústria alimentícia: o fornecedor responde pela segurança sanitária de ponta a ponta.
A prova técnica (perícia) torna-se menos relevante que a prova do fato (existência do corpo estranho) e a máxima da experiência comum quanto ao nojo e insegurança causados.
O tratamento dado ao consumidor no momento da reclamação (SAC) pode ser o fiel da balança para a judicialização e para o valor da condenação.

Perguntas e Respostas

1. A decisão de que não é necessária a ingestão para caracterizar dano moral é vinculante para todos os juízes?

Não se trata de uma súmula vinculante, mas é um entendimento consolidado no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Isso significa que, embora um juiz de primeira instância possa decidir de forma diferente, a tendência é que a decisão seja reformada nos tribunais superiores para alinhar-se a esse precedente, garantindo maior segurança jurídica ao consumidor.

2. O que diferencia o “mero aborrecimento” do dano moral nestes casos segundo a visão atual?

O mero aborrecimento refere-se a transtornos do cotidiano que não ofendem direitos da personalidade. No caso de corpo estranho em alimentos, o STJ entende que a situação ultrapassa o mero aborrecimento porque viola o direito fundamental à alimentação segura, expõe o consumidor a risco de saúde e causa abalo psicológico (repugnância e quebra de confiança) que interfere no bem-estar do indivíduo.

3. Se o consumidor perceber o corpo estranho antes mesmo de abrir a embalagem, ainda há dano moral?

A jurisprudência é mais oscilante neste cenário. Alguns julgados entendem que, se a embalagem é transparente e o defeito foi notado antes da abertura, o risco foi evitado completamente, cabendo apenas a troca do produto. Contudo, há teses fortes defendendo que a simples exposição do produto defeituoso no mercado já viola o dever de segurança e causa frustração indenizável, embora o valor possa ser menor do que nos casos onde o produto foi servido ou o pacote aberto.

4. A responsabilidade é solidária entre o fabricante e o comerciante (supermercado/restaurante)?

Em regra, pelo artigo 18 do CDC (vício do produto), a responsabilidade é solidária entre todos os integrantes da cadeia de fornecimento. O consumidor pode processar tanto o fabricante quanto o local onde comprou. Se tratado como fato do produto (art. 12), a responsabilidade do comerciante é subsidiária, exceto se o fabricante não puder ser identificado ou se o comerciante não conservou adequadamente o produto perecível. Na prática, advogados costumam acionar ambos com base na solidariedade do art. 18.

5. Como a empresa pode se defender provando que o corpo estranho não estava no processo de fabricação?

A defesa geralmente baseia-se na integridade do processo produtivo e na impossibilidade técnica da presença daquele objeto. As empresas utilizam laudos de conformidade, registros de controle de qualidade e, em juízo, podem solicitar perícia no produto (se disponível) para verificar se o corpo estranho apresenta sinais de ter passado pelo processo industrial (ex: se um inseto está cozido ou frito junto com o alimento). Se o corpo estranho estiver intacto em um alimento processado, isso pode indicar contaminação posterior à abertura da embalagem.

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Este artigo teve a curadoria da equipe da Legale Educacional e foi escrito utilizando inteligência artificial a partir do seu conteúdo original disponível em https://www.conjur.com.br/2025-dez-19/corpo-estranho-em-alimento-caracteriza-dano-moral-mesmo-sem-ingestao/.

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