A Distorção de Constant e a Hipertrofia do Executivo: Uma Análise Crítica de 1824
A arquitetura dos poderes no Brasil Imperial não foi apenas uma curiosidade histórica, mas a fundação de uma cultura política que reverbera até hoje. Ao analisarmos a Constituição de 1824, é comum citarmos a influência de Benjamin Constant e sua teoria do “Poder Neutro”. No entanto, o jurista atento deve perceber que houve uma “tropicalização” — ou melhor, uma distorção conveniente — dessa teoria em solo brasileiro.
Enquanto Constant idealizava um poder preservador distinto e separado do Executivo (que seria gerido pelos ministros), D. Pedro I e os constituintes de 1824 promoveram uma fusão perigosa. O Imperador acumulava a Chefia de Estado (Moderador) e a Chefia de Governo (Executivo), criando uma hipertrofia institucional travestida de neutralidade. Para o advogado contemporâneo, essa distinção é vital: a neutralidade pressupõe distanciamento, algo impossível quando o árbitro também detém a caneta da administração ativa. O que tivemos, na prática, foi a institucionalização de uma vontade suprema, desenhada para intervir sempre que o mecanismo político travasse.
O “Parlamentarismo às Avessas” e o DNA do Presidencialismo de Coalizão
A engenharia política do Império, baseada no artigo 101 da Carta de 1824, operava através de um mecanismo engenhoso: o Imperador escolhia o Gabinete e, se este não tivesse apoio, dissolvia a Câmara para convocar novas eleições que garantissem a maioria. Esse fenômeno, conhecido como “parlamentarismo às avessas”, revela o DNA do nosso atual sistema político.
Embora não tenhamos mais a prerrogativa formal da dissolução do Parlamento, a lógica de que o Executivo precisa “construir” sua base legislativa a qualquer custo permanece. O jurista pragmático identifica aqui a raiz histórica dos nossos problemas de governabilidade:
- No Império, a moeda de troca era a dissolução da Câmara e a nomeação direta.
- Na República atual, a moeda tornou-se a execução orçamentária, as emendas impositivas e a distribuição de cargos.
Essa dependência genética explica por que, no Brasil, o Legislativo e o Executivo vivem em uma tensão constante entre cooptação e chantagem, uma herança direta daquela cultura onde a governabilidade era imposta de cima para baixo.
O Conselho de Estado e a Blindagem da Irresponsabilidade
Um ponto frequentemente negligenciado nas análises superficiais é o papel do Conselho de Estado. O Poder Moderador não operava no vácuo intelectual; ele possuía um braço operacional de elite. Mais importante ainda era o dogma da “inviolabilidade” do Imperador (art. 99), que o isentava de responsabilidade, transferindo-a aos ministros.
A transição para a República deveria ter sepultado essa lógica, introduzindo o accountability e a responsabilidade republicana. Contudo, ao observar a prática forense atual, notamos que a busca por “blindagens” jurídicas — seja através de foros privilegiados extensivos ou de imunidades parlamentares interpretadas de forma absoluta — nada mais é do que uma tentativa moderna de emular a antiga irresponsabilidade imperial. O advogado combativo deve usar esse paralelo histórico para questionar institutos que colocam agentes políticos acima da lei, lembrando que a República não comporta soberanos intocáveis.
O Mito do Artigo 142: Decisionismo Schmittiano vs. Ordem Constitucional
A discussão contemporânea sobre o artigo 142 da Constituição de 1988 exige rigor técnico e honestidade intelectual. Interpretar as Forças Armadas como um “Poder Moderador” não é apenas um erro hermenêutico; é uma tentativa de introduzir um estado de exceção dentro da normalidade democrática.
Juridicamente, quem invoca o artigo 142 para solicitar intervenção militar está buscando não um moderador neutro, mas um “Sovereign” (Soberano) nos moldes de Carl Schmitt: aquele que decide no estado de exceção. A Constituição de 1988, ao contrário, diluiu o poder soberano entre as instituições. As Forças Armadas são instituições de Estado, subordinadas ao poder civil, e sua função é a defesa da ordem, jamais a arbitragem política. O advogado deve combater essa tese não apenas como inconstitucional, mas como uma ruptura da própria lógica do Estado de Direito, onde a última palavra cabe à Constituição, e não às armas.
O STF e o Risco do “Imperador de Toga”
Com o fim do Poder Moderador formal em 1891, o Supremo Tribunal Federal assumiu o papel de guardião da Constituição e árbitro dos conflitos federativos. No entanto, vivemos hoje o fenômeno da judicialização da política, onde o STF é frequentemente chamado a decidir questões que, em tese, pertenceriam à arena legislativa.
Aqui reside o ponto de tensão crucial para o estudioso do Direito:
- O Poder Moderador agia de ofício e politicamente.
- O Judiciário deve agir apenas mediante provocação e tecnicamente.
A passividade processual (inércia da jurisdição) é a única barreira que impede a Corte Constitucional de se tornar um novo Poder Moderador. Quando o Judiciário começa a agir de ofício, ou quando suas decisões transcendem a técnica para adentrar na discricionariedade política sem base legal estrita, flertamos perigosamente com o retorno de uma vontade suprema. A vigilância constitucional depende de advogados que saibam distinguir a necessária guarda da Constituição do ativismo que usurpa a soberania popular.
A Prática Jurídica à Luz da História
O estudo do Poder Moderador não é um exercício de arqueologia, mas de diagnóstico institucional. Entender como o poder se concentrava e se protegia no passado oferece ferramentas insubstituíveis para o advogado atuar no presente. Seja em sustentações orais no STF, seja na elaboração de teses sobre separação de poderes, a capacidade de identificar os “fantasmas imperiais” travestidos de modernidade — centralização excessiva, irresponsabilidade administrativa ou militarismo interpretativo — é o que separa o técnico da lei do verdadeiro jurista.
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Principais Insights
- Distorção de Origem: O Brasil “tropicalizou” Benjamin Constant, fundindo Chefia de Estado e Governo, criando um Executivo hipertrofiado em vez de um árbitro neutro.
- Engenharia de Coalizão: O mecanismo de dissolução da Câmara no Império é o ancestral direto da atual barganha orçamentária entre Executivo e Legislativo.
- O Perigo Schmittiano: A leitura do Art. 142 como Poder Moderador é uma busca pelo “Soberano da Exceção”, incompatível com a democracia.
- Inércia como Trava: A diferença fundamental entre o STF e o Poder Moderador é a provocação. A atuação ex officio é o caminho para o arbítrio.
Perguntas e Respostas
1. Qual a diferença fundamental entre a teoria de Benjamin Constant e a prática do Poder Moderador no Brasil?
Constant teorizou um “Poder Neutro” separado do Executivo para arbitrar conflitos. No Brasil, D. Pedro I acumulou as funções de Moderador e Chefe do Poder Executivo, eliminando a neutralidade e concentrando poder decisório e administrativo na mesma figura.
2. Como o “Parlamentarismo às Avessas” se relaciona com a política atual?
No Império, o Executivo moldava o Legislativo via dissolução. Hoje, embora sem esse poder formal, o Executivo tenta moldar a base legislativa através do controle orçamentário e de cargos. Ambos são sintomas de um sistema que busca governabilidade “de cima para baixo”.
3. O que era o Conselho de Estado e qual sua relevância?
Era o órgão de consultoria do Imperador, atuando como o braço intelectual e operacional do Poder Moderador. Sua existência demonstra que o exercício do poder não era solitário, mas parte de uma estrutura burocrática de elite que blindava a monarquia.
4. Por que a invocação do artigo 142 como Poder Moderador é considerada um “decisionismo”?
Porque se baseia na teoria de Carl Schmitt sobre o “Soberano” que decide no estado de exceção. Ao atribuir às Forças Armadas o poder de intervir nos outros poderes, rompe-se a hierarquia constitucional e a subordinação militar ao poder civil, criando uma soberania armada não prevista na lei.
5. O STF exerce hoje um papel de Poder Moderador?
Tecnicamente não, pois suas decisões são jurídicas e dependem de provocação (inércia). Contudo, na prática política, ao decidir grandes conflitos nacionais, o Tribunal exerce uma função estabilizadora. O risco institucional surge quando a Corte age de ofício ou politicamente, aproximando-se perigosamente da antiga figura do moderador discricionário.
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Acesse a lei relacionada em Constituição Política do Império do Brazil de 1824
Este artigo teve a curadoria da equipe da Legale Educacional e foi escrito utilizando inteligência artificial a partir do seu conteúdo original disponível em https://www.conjur.com.br/2025-dez-10/a-proposito-do-poder-moderador-e-do-seu-exercicio-por-pedro-2o/.