A Competência Constitucional do Tribunal do Júri e a Análise da Motivação Racial como Qualificadora no Homicídio
O Direito Penal e o Direito Processual Penal brasileiros operam sob um sistema de freios e contrapesos meticulosamente desenhado pela Constituição Federal de 1988. No centro desse sistema, quando se trata de crimes dolosos contra a vida, reside a instituição do Tribunal do Júri. A soberania dos veredictos não é apenas uma frase retórica, mas um princípio basilar que delimita a atuação da magistratura togada e entrega à sociedade a responsabilidade de julgar seus pares.
Recentemente, debates jurídicos de alta complexidade têm girado em torno da extensão dessa competência, especialmente no que tange à admissibilidade de qualificadoras na fase de pronúncia. Um ponto nevrálgico dessa discussão é a análise da motivação racial no contexto do crime de homicídio. A questão técnica que se impõe ao jurista não é se o racismo é repugnante – o que é um consenso jurídico e social – mas sim quem detém a competência para valorar se tal motivação estava presente no caso concreto e se ela configura a qualificadora do motivo torpe: o juiz togado na fase de admissibilidade ou o Conselho de Sentença.
Para compreender essa dinâmica, é essencial revisitar a estrutura do procedimento do júri, o conceito de qualificadoras e a jurisprudência superior sobre a exclusão dessas circunstâncias antes do julgamento em plenário. O advogado criminalista deve dominar essas nuances para atuar com eficácia, seja na defesa ou na assistência de acusação, garantindo que o devido processo legal seja respeitado em sua integralidade.
O Procedimento Bifásico e o Juízo de Admissibilidade
O procedimento do Tribunal do Júri é escalonado, conhecido como bifásico ou escalonado. A primeira fase, denominada judicium accusationis ou sumário da culpa, encerra-se com a decisão de pronúncia, impronúncia, desclassificação ou absolvição sumária. A decisão de pronúncia, prevista no artigo 413 do Código de Processo Penal, é um mero juízo de admissibilidade da acusação. O magistrado não condena, nem absolve; ele apenas verifica se há indícios suficientes de autoria e prova da materialidade do fato para remeter o caso ao seu juiz natural: o Conselho de Sentença.
Nesta etapa processual, vigora o princípio in dubio pro societate, embora parte da doutrina critique essa nomenclatura, preferindo afirmar que se trata apenas da competência constitucional do Júri. O cerne da questão é que o juiz togado deve agir com extrema cautela. Ele não pode usurpar a competência dos jurados. Se houver dúvida razoável sobre a existência de um crime doloso contra a vida ou suas circunstâncias, o caminho natural é a pronúncia.
É neste momento que surge a controvérsia sobre as qualificadoras. As qualificadoras são circunstâncias que alteram os limites da pena (patamares mínimo e máximo), tornando o crime mais grave. No homicídio, elas estão elencadas no parágrafo 2º do artigo 121 do Código Penal. Aprofundar-se no estudo do Curso de Homicídio é fundamental para entender a taxonomia dessas circunstâncias e como elas impactam a dosimetria da pena e a estratégia processual.
A jurisprudência dos Tribunais Superiores, notadamente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), consolidou o entendimento de que as qualificadoras só podem ser excluídas na decisão de pronúncia quando forem manifestamente improcedentes, descabidas ou sem qualquer apoio no conjunto probatório dos autos. Se houver o mínimo lastro probatório ou se a questão for controversa, a decisão deve ser submetida aos jurados. Retirar a qualificadora prematuramente seria uma violação direta da competência constitucional do Tribunal do Júri.
A Motivação Racial e o Motivo Torpe
A motivação racial, quando impulsiona a prática de um homicídio, insere-se dogmaticamente na qualificadora do motivo torpe (art. 121, § 2º, I, do CP). O motivo torpe é aquele abjeto, repugnante, vil, que causa especial repulsa à sociedade. O preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, por sua própria natureza antissocial e desumana, preenche perfeitamente o conceito jurídico de torpeza.
No entanto, a caracterização dessa motivação no caso concreto exige uma análise probatória profunda. Não basta a alegação; é necessário demonstrar o nexo causal subjetivo entre o preconceito e a conduta homicida. A questão que se coloca para o operador do Direito é processual: se há indícios de que o crime foi cometido em razão de ódio racial, o juiz togado pode afastar essa qualificadora alegando, por exemplo, que a prova é frágil?
A resposta técnica, alinhada aos precedentes das Cortes Superiores, é negativa. A valoração da prova sobre a intenção do agente (o elemento subjetivo) pertence aos jurados. Se o juiz togado, na fase de pronúncia, decide que a prova é “insuficiente” para a qualificadora, ele está, na prática, realizando um julgamento de mérito antecipado sobre um aspecto crucial do crime. Isso invade a esfera de soberania dos veredictos.
A inclusão da motivação racial como qualificadora não se confunde com o crime autônomo de racismo ou de injúria racial. No homicídio qualificado, o preconceito é a mola propulsora da conduta de matar. É o “porquê” do crime. A análise desse “porquê” é eminentemente subjetiva e social, matéria-prima da decisão dos jurados, que julgam por íntima convicção e representam a consciência da sociedade naquele momento histórico.
Subjetividade e Comunicabilidade
Um ponto de alta indagação doutrinária refere-se à natureza da qualificadora do motivo torpe baseada em racismo: ela é subjetiva ou objetiva? A doutrina majoritária classifica o motivo torpe como uma circunstância de caráter pessoal (subjetiva). Isso tem reflexos diretos no concurso de pessoas, conforme o artigo 30 do Código Penal. Circunstâncias subjetivas não se comunicam aos coautores ou partícipes, salvo se elementares do crime.
Porém, no contexto de crimes de ódio ou cometidos por grupos com ideologias segregacionistas, a discussão se complexifica. Se todos os agentes compartilham do mesmo desígnio discriminatório, a torpeza se estende a todos. Essa análise, novamente, recai sobre o animus dos agentes. Determinar se um coautor agiu movido pelo mesmo ódio racial ou se apenas aderiu à conduta principal por outro motivo é tarefa para o Conselho de Sentença.
O profissional que atua no Tribunal do Júri precisa estar apto a debater essas teses em plenário. A defesa pode tentar desconstruir a motivação racial para afastar a qualificadora e reduzir a pena, enquanto a acusação deve saber articular os fatos para demonstrar que o preconceito foi determinante para o resultado morte. A compreensão profunda sobre os crimes contra a vida e suas nuances é o que separa o advogado mediano do especialista.
O Papel do STJ na Preservação da Competência do Júri
O Superior Tribunal de Justiça atua como guardião da lei federal e, nesse contexto, tem reafirmado constantemente a necessidade de preservação da competência do Júri. A intervenção do Tribunal togado sobre o mérito da acusação deve ser mínima na primeira fase. Ao decidir que questões complexas, como a presença de motivação racial, devem ser submetidas ao crivo popular, o Tribunal não está pré-julgando o réu, mas sim garantindo que o juiz natural da causa exerça seu papel.
Quando um Tribunal de Justiça local, em sede de recurso em sentido estrito, decota (retira) uma qualificadora que possui suporte probatório mínimo, ele viola o artigo 413 do CPP e o artigo 5º, XXXVIII, da Constituição. O STJ, ao reverter tais decisões, restaura a ordem processual. A lógica é simples: na dúvida sobre a intenção do agente (se houve ou não racismo motivador), quem deve sanar a dúvida é o povo, representado pelos sete jurados.
Isso impõe uma responsabilidade imensa aos advogados. A batalha sobre as qualificadoras começa muito antes do plenário. Começa na denúncia, passa pela instrução probatória da primeira fase e culmina nas alegações finais e recursos prévios à pronúncia. Saber identificar quando uma qualificadora é “manifestamente improcedente” e quando ela é apenas “duvidosa” (e, portanto, deve ir a Júri) é uma habilidade crítica.
Para o advogado de defesa, o desafio é demonstrar a absoluta ausência de nexo entre a suposta motivação e o ato, buscando o decote ainda na pronúncia para evitar o risco de uma condenação qualificada pelo plenário, onde a comoção social e a retórica podem pesar mais que a técnica fria. Para a acusação, o objetivo é garantir que todos os elementos do dolo, incluindo os motivos vis, sejam apreciados por quem de direito.
A Interseccionalidade entre Direito Penal e Direitos Humanos
A análise de motivações discriminatórias no Direito Penal não ocorre no vácuo. Ela dialoga com tratados internacionais de Direitos Humanos dos quais o Brasil é signatário. O combate ao racismo e a outras formas de discriminação é um mandamento constitucional. Quando o sistema de justiça criminal ignora a motivação racial de um crime grave, ele falha em proteger bens jurídicos fundamentais e em cumprir compromissos internacionais.
Entretanto, essa busca por justiça social não pode atropelar as garantias individuais do réu. O devido processo legal exige que a imputação de uma motivação racial seja provada. Não se pode presumir a torpeza apenas pela diferença racial entre vítima e agressor. É necessário prova do dolo específico. Esse equilíbrio delicado entre a proteção eficiente dos direitos humanos e o garantismo penal é o campo de batalha diário nas cortes criminais.
O reconhecimento de que o Tribunal do Júri é o local adequado para debater se um crime foi um “crime de ódio” reflete a maturidade das instituições. Transfere-se para a sociedade a decisão sobre o quão reprovável é aquela conduta específica. Se a sociedade, através dos jurados, reconhece a motivação racial, a resposta penal é agravada, cumprindo a função de prevenção geral e especial da pena.
Para dominar completamente as estratégias de atuação nesse rito processual tão específico e solene, o aprimoramento constante é vital. Entender não apenas a lei seca, mas a jurisprudência viva e a psicologia do julgamento é o diferencial competitivo no mercado jurídico atual.
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Insights Jurídicos
A discussão sobre a competência para julgar a motivação racial no homicídio traz à tona a importância do princípio in dubio pro societate na fase de pronúncia, que, apesar das críticas doutrinárias, permanece vigente na jurisprudência dos tribunais superiores. O advogado deve estar atento ao fato de que a “dúvida razoável” na primeira fase do Júri opera em desfavor do réu no que tange à remessa ao plenário, diferentemente da sentença final de mérito.
Além disso, a qualificação do racismo como motivo torpe reafirma a elasticidade dos tipos penais abertos e a necessidade de interpretação conforme a Constituição. O operador do direito não pode se limitar à literalidade do Código Penal de 1940; deve ler o conceito de “torpeza” à luz dos valores sociais contemporâneos e da repulsa constitucional ao racismo. A estratégia defensiva ou acusatória deve, portanto, ser construída não apenas sobre fatos, mas sobre a valoração social desses fatos.
Por fim, a técnica recursal no Tribunal do Júri é decisiva. A interposição correta de Recursos em Sentido Estrito ou Apelações, e o manejo de Habeas Corpus e Recursos Especiais ao STJ para discutir a admissibilidade de qualificadoras, exige um conhecimento profundo do sistema de nulidades e preclusões. A vitória processual muitas vezes reside na capacidade de demonstrar que o tribunal local usurpou a competência constitucional do Júri ao valorar provas prematuramente.
Perguntas e Respostas
1. O juiz pode retirar a qualificadora do motivo torpe (racismo) na fase de pronúncia?
O juiz togado só pode excluir qualificadoras na fase de pronúncia se elas forem manifestamente improcedentes, ou seja, se não houver nenhum suporte probatório nos autos. Se houver dúvida ou indícios mínimos de que o crime foi motivado por racismo, a decisão deve ser mantida e submetida ao Conselho de Sentença, que é o juiz natural da causa.
2. Qual a diferença entre o crime de racismo e a qualificadora de motivo torpe por racismo no homicídio?
O crime de racismo (Lei 7.716/89) é um delito autônomo. Já no homicídio, o racismo entra como a motivação do agente para matar (o “porquê” do crime). Juridicamente, o preconceito racial é enquadrado como motivo torpe (art. 121, § 2º, I, CP), o que eleva a pena do homicídio, alterando seus patamares para 12 a 30 anos de reclusão.
3. A motivação racial se comunica aos coautores do homicídio?
Regra geral, o motivo é uma circunstância subjetiva (de caráter pessoal) e não se comunica aos coautores, conforme o art. 30 do CP. No entanto, se ficar provado que o coautor conhecia a motivação racial e aderiu a ela, ou seja, se o ódio racial era o liame subjetivo que unia os agentes na prática do crime, a qualificadora pode se estender a ele. Isso dependerá da análise probatória feita pelos jurados.
4. O que significa o princípio “in dubio pro societate” na fase de pronúncia?
Significa que, na fase de admissibilidade da acusação (pronúncia), a dúvida sobre a autoria ou sobre a presença de qualificadoras deve ser resolvida em favor da sociedade, remetendo-se o caso para julgamento pelo Tribunal do Júri. Não se exige certeza absoluta para pronunciar o réu, apenas indícios suficientes. A certeza para condenação só é exigida no julgamento em plenário.
5. Por que a decisão sobre a motivação racial cabe aos jurados e não ao juiz togado?
Porque a Constituição Federal de 1988 estabeleceu a competência do Tribunal do Júri para julgar os crimes dolosos contra a vida (art. 5º, XXXVIII). Essa competência inclui não apenas dizer se o réu matou, mas também analisar todas as circunstâncias do crime, incluindo as motivações morais e subjetivas. O juiz togado não pode substituir a convicção íntima dos jurados pela sua avaliação técnica sobre o mérito da causa, salvo em casos de flagrante ausência de provas.
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Este artigo teve a curadoria da equipe da Legale Educacional e foi escrito utilizando inteligência artificial a partir do seu conteúdo original disponível em https://www.conjur.com.br/2025-dez-18/stj-decide-que-juri-deve-analisar-motivacao-racial-no-caso-joao-alberto/.