A Responsabilidade Penal no Mercado Financeiro: Entre a Dogmática e a Prática Forense
A atuação no mercado financeiro brasileiro, especificamente na gestão e administração de fundos de investimento, deixou de ser uma atividade avaliada apenas sob a ótica dos riscos de mercado ou de crédito. Nas últimas décadas, presenciamos uma expansão significativa do braço punitivo do Estado. O Direito Penal Econômico, que deveria operar como ultima ratio, tem sido aplicado com frequência alarmante sobre condutas que habitam a zona cinzenta entre o ilícito administrativo (CVM) e o crime financeiro.
Para o advogado criminalista e para o gestor, a leitura da Lei nº 7.492/86 (Lei dos Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional) exige hoje um olhar clínico. Não basta compreender a equiparação legal do artigo 25, que coloca gestores de recursos no mesmo patamar de diretores de bancos. É necessário dominar as nuances que separam um “bad business decision” (uma decisão de negócio ruim) de uma conduta criminosa.
O gestor não responde apenas pelo sucesso ou fracasso da estratégia, mas a linha que separa uma estratégia agressiva da gestão temerária é o verdadeiro campo de batalha. É aqui que a defesa técnica precisa atuar para evitar que o risco de mercado se transforme, injustamente, em risco de liberdade.
O Desafio da Taxatividade: Gestão Fraudulenta vs. Gestão Temerária
O cerne da imputação penal gravita em torno da gestão fraudulenta (art. 4º) e da gestão temerária (parágrafo único). Contudo, a interpretação simplista desses tipos penais é uma armadilha.
A gestão fraudulenta exige o dolo específico, o ardis, a manobra ilícita voltada a enganar o mercado ou investidores. Já a gestão temerária é o grande desafio defensivo. Trata-se de uma norma penal em branco e um tipo penal aberto. A acusação costuma alegar que a violação de regras de compliance ou normas da CVM configura, automaticamente, o crime.
A defesa técnica de excelência deve resistir a esse automatismo. Nem toda infração administrativa é crime. É imperativo invocar a Regra de Julgamento do Negócio (Business Judgment Rule), originária do direito societário. Se o gestor tomou uma decisão informada, de boa-fé e sem conflito de interesses à época (ex-ante), o fato de a operação ter gerado prejuízo não pode configurar temeridade criminal. O Direito Penal não deve punir o insucesso empresarial, mas sim a deslealdade grave com o patrimônio de terceiros.
Para navegar por essas distinções com profundidade dogmática, a especialização é vital. A Pós-Graduação em Direito Penal e Processo Penal oferece o ferramental para que o advogado saiba arguir a atipicidade da conduta baseada na teoria do risco permitido.
Cegueira Deliberada e o Princípio da Confiança
A Teoria da Cegueira Deliberada (Willful Blindness) tem sido importada do Common Law e aplicada pelos tribunais superiores (STF e STJ) para fundamentar o dolo eventual. O argumento é que o gestor que cria barreiras para não saber de ilícitos subordinados responde como se soubesse.
Contudo, a aplicação dessa teoria no Brasil flerta perigosamente com a responsabilidade penal objetiva. Há uma diferença abissal entre o dolo eventual (assumir o risco do resultado) e a negligência (não saber). A defesa deve focar na segregação de funções e no Princípio da Confiança. Em estruturas complexas, é legítimo que o gestor delegue tarefas e confie na capacidade técnica de seus subordinados.
O advogado deve demonstrar que o desconhecimento do gestor decorreu da complexidade do sistema ou de falhas de reporte, e não de uma “cegueira intencional” fabricada para garantir impunidade.
Compliance: Blindagem Real ou “Paper Compliance”?
Muitos acreditam que ter um manual de compliance afasta a responsabilidade penal. Isso é uma meia-verdade. Um programa de integridade que existe apenas no papel (paper compliance) pode ser, inclusive, prejudicial à defesa. Se o Ministério Público provar que as regras existiam, mas eram deliberadamente ignoradas pela alta direção (bypass), a comprovação do dolo torna-se mais fácil.
Para que o compliance funcione como uma barreira à imputação penal — quebrando o nexo causal e demonstrando a boa-fé —, ele precisa ser efetivo e aplicado no cotidiano. É a cultura de conformidade que protege, não o documento na gaveta. Profissionais que desejam estruturar programas robustos encontram na Iniciação à Compliance Empresarial as bases para criar mecanismos que servem, de fato, como prova de diligência em juízo.
A Batalha da Perícia: Combatendo o Viés do Retrospecto
A instrução processual nesses crimes é decidida na perícia contábil e financeira. No entanto, questionar o laudo oficial é pouco. A defesa precisa atacar a metodologia da acusação.
Frequentemente, peritos e acusadores incidem no Viés do Retrospecto (Hindsight Bias): analisam a operação com as “lentes do futuro”, sabendo que deu errado. A defesa deve impor uma análise ex-ante. É necessário reconstruir o cenário econômico do momento da decisão. Se o VaR (Value at Risk) e os índices de liquidez estavam dentro do mandato do fundo no momento da operação, o prejuízo subsequente, causado por fatores exógenos, é irrelevante penalmente. Perder dinheiro, sem fraude, não é crime.
Conflito de Interesses x Apropriação Indébita
O artigo 5º da Lei nº 7.492/86 trata da apropriação indébita. É comum que a acusação tente transformar situações de conflito de interesses (ilícito administrativo) em crime de apropriação.
O conflito de interesses, como o cross trading entre fundos da mesma casa para gerar liquidez artificial, habita uma zona cinzenta. Todavia, para configurar crime, exige-se o animus rem sibi habendi (intenção de tomar para si) ou o desvio doloso em proveito próprio ou alheio. O advogado deve demonstrar que, embora a operação possa ser questionável sob a ótica da CVM, não houve dolo de apropriação, mas sim uma tentativa de gestão — ainda que equivocada — dentro da lógica de mercado.
Insights sobre o Tema
- Risco x Crime: A volatilidade do mercado não pode ser confundida com dolo. A defesa deve lutar pela aplicação da Business Judgment Rule para proteger decisões de negócio tomadas de boa-fé.
- Perigo da Omissão: Gestores possuem posição de garante. A omissão em impedir um crime, quando se tinha o dever e o poder de agir, pode gerar responsabilidade penal.
- Prova Técnica: A advocacia nesta área exige diálogo com a economia. A contestação da materialidade passa por provar que o risco assumido era permitido no momento da ação.
Perguntas e Respostas
1. Um gestor pode ser condenado criminalmente apenas por violar uma norma da CVM?
Em tese, não. O Direito Penal é a ultima ratio. A violação de norma administrativa não deve, automaticamente, configurar o crime de gestão temerária. É necessário provar que a conduta foi além da irregularidade administrativa, criando um risco proibido e injustificável com dolo (ou culpa grave, onde a lei permitir a interpretação extensiva da temeridade).
2. Como diferenciar erro de negócio de gestão temerária?
O erro de negócio ocorre quando uma decisão, tomada com as informações disponíveis e dentro das regras de governança, resulta em prejuízo. A gestão temerária envolve a afoiteza, a violação das regras prudenciais e a ausência de lastro técnico. A defesa deve focar na análise ex-ante para provar que a decisão era razoável no momento em que foi tomada.
3. A teoria da Cegueira Deliberada é aplicada automaticamente no Brasil?
Embora venha sendo utilizada, sua aplicação não é automática e deve ser combatida quando utilizada para mascarar a responsabilidade objetiva. A defesa deve provar que não houve “cegueira intencional”, mas sim delegação de funções legítima amparada pelo Princípio da Confiança.
4. Qual o papel da perícia na defesa de crimes financeiros?
A perícia é fundamental para demonstrar a materialidade (ou a falta dela). O papel da defesa técnica é garantir que a perícia avalie a conduta com base nos dados disponíveis no momento da operação, afastando o “viés do retrospecto” que contamina a análise após a ocorrência do prejuízo.
5. O que configura a apropriação indébita em fundos de investimento?
Não basta o conflito de interesses. É necessário provar que o gestor inverteu o título da posse, agindo como se dono fosse do dinheiro dos cotistas, ou desviou os recursos para finalidade diversa da contratada com a intenção de obter vantagem indevida para si ou para outrem.
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Acesse a lei relacionada em Lei nº 7.492, de 16 de junho de 1986
Este artigo teve a curadoria da equipe da Legale Educacional e foi escrito utilizando inteligência artificial a partir do seu conteúdo original disponível em https://www.conjur.com.br/2025-dez-11/a-responsabilidade-penal-de-administradores-e-gestores-de-fundos-de-investimento/.