O Dolo de Terceiro e a Prática Forense: Erro Substancial e Estratégias Processuais na Compra e Venda Viciada
A complexidade das relações comerciais contemporâneas, impulsionada pela velocidade das transações digitais, impôs novos desafios à advocacia cível. O cenário mais recorrente nos tribunais brasileiros — a triangulação fraudulenta em contratos de compra e venda, popularmente conhecida como “Golpe do Intermediário” ou “Golpe da OLX” — exige que o operador do Direito vá muito além da análise superficial dos fatos. Não se trata apenas de aplicar a letra fria da lei, mas de compreender a dinâmica probatória e as teses que efetivamente convencem a magistratura.
O cerne da questão jurídica reside na validade do negócio celebrado sob a influência de artifícios ardilosos de quem não faz parte da relação contratual direta. Contudo, a batalha judicial moderna deslocou-se da simples discussão sobre a anulação para um campo minado envolvendo a teoria da aparência, a vedação ao comportamento contraditório e a responsabilidade civil baseada na “última chance” de evitar o dano.
A Armadilha do Artigo 148 e a Prevalência do Erro Substancial
A doutrina clássica aponta os artigos 145 a 148 do Código Civil como o norte para resolver o dolo. O artigo 148, especificamente, estabelece que o negócio jurídico pode ser anulado se a parte a quem aproveite o dolo tivesse ou devesse ter conhecimento dele.
Na “trincheira forense”, todavia, confiar exclusivamente nesse dispositivo é uma estratégia arriscada. No “Golpe do Intermediário”, o estelionatário costuma “blindar” ambas as partes: o vendedor acredita estar negociando com um parente ou sócio do fraudador, e o comprador acredita estar quitando uma dívida do intermediário. Provar o consilium fraudis (o conluio ou a má-fé) da outra parte é, muitas vezes, uma tarefa impossível, pois ambas são vítimas.
Por isso, a advocacia de ponta tem migrado a tese principal para o Erro Substancial (Artigos 138 e 139 do Código Civil). Ao invés de tentar provar que a contraparte sabia da fraude (o que atrai o ônus de provar a má-fé), o advogado deve demonstrar que houve um erro essencial sobre a natureza do negócio ou sobre a pessoa, e que esse erro era cognoscível. Nesse contexto, o dolo de terceiro torna-se uma tese subsidiária, enquanto o vício na formação da vontade pelo erro assume o protagonismo para buscar a anulação.
A Teoria da Aparência e o “Venire Contra Factum Proprium”
Um dos momentos decisivos onde essas demandas são ganhas ou perdidas não é a transferência bancária em si, mas o ato de entrega do bem ou da documentação. Aqui entra a aplicação prática da Teoria da Aparência e a vedação ao Venire Contra Factum Proprium (proibição do comportamento contraditório).
Quando o vendedor, ludibriado pelo golpista, assina o Recibo de Compra e Venda (DUT) ou entrega as chaves do veículo ao comprador sem antes confirmar o recebimento do dinheiro em sua conta, ele cria uma “aparência de direito”.
- Convalidação Tácita: Ao assinar o recibo dando quitação, o vendedor valida, aos olhos do comprador de boa-fé, as instruções dadas pelo intermediário fraudulento.
- A Defesa do Comprador: Se a defesa patrocina quem pagou, o argumento central deve ser: “O comprador só realizou o pagamento ao terceiro porque o proprietário, com seu comportamento (entregar o bem/assinar recibo), ratificou a transação”.
O Direito protege a confiança legítima. Aquele que, por negligência, cria uma situação de aparente regularidade, não pode posteriormente invocar a própria torpeza para prejudicar quem confiou naquela aparência.
Responsabilidade Civil: A “Última Chance Clara”
A jurisprudência tem oscilado quanto à repartição dos prejuízos. Embora existam decisões pela divisão igualitária dos danos (culpa concorrente), a tendência moderna busca identificar quem teve a “última chance clara” de evitar o golpe e falhou por negligência grave. A análise do nexo causal deve focar em quem quebrou o dever de veracidade e cautela:
- O Silêncio do Vendedor: Se o vendedor foi instruído pelo fraudador a dizer que era “primo” ou “sócio” e mentiu para o comprador durante a vistoria, ele violou o dever de informação e atraiu para si a responsabilidade.
- A Imprudência do Comprador: Se o comprador depositou valores em conta de titularidade estranha, diversa do proprietário registral, sem qualquer verificação (o que atrai a aplicação de súmulas sobre negligência), a culpa tende a recair sobre ele.
Para aprofundar o entendimento sobre como esses vícios afetam a estrutura das obrigações e a responsabilidade, é recomendável o estudo detalhado na Teoria dos Negócios Jurídicos.
Estratégia Processual: O Híbrido Cível-Criminal e o “Timing” das Tutelas
O advogado que atua apenas na esfera cível nessas demandas está jogando com metade das cartas. A fraude exige uma atuação híbrida.
- O Inquérito Policial como Prova: A quebra do sigilo bancário da conta do “laranja” (beneficiário do dinheiro) geralmente ocorre no âmbito criminal. O advogado cível deve acompanhar o inquérito ou atuar como assistente de acusação para trazer essa prova emprestada ao processo cível, identificando o destino dos valores.
- MED (Mecanismo Especial de Devolução): Antes mesmo de judicializar, a orientação imediata ao cliente deve ser o acionamento do MED via banco, uma ferramenta administrativa do Banco Central para bloqueio de valores oriundos de fraude via PIX.
- Tutela de Urgência Cirúrgica: No pedido liminar, não basta pedir o bloqueio de transferência (que apenas impede a venda futura). Deve-se pleitear o bloqueio de circulação via RENAJUD (para forçar a apreensão do bem se estiver com a parte inadimplente) e o arresto cautelar nas contas envolvidas.
A compreensão detalhada dessas dinâmicas contratuais e das obrigações decorrentes é vital para o advogado, sendo um tema amplamente debatido na Maratona Contratos de Compra e Venda e Permuta.
Conclusão
A atuação jurídica em casos de anulação de compra e venda por dolo de terceiro exige pragmatismo. A boa-fé se presume, mas a negligência grave paga a conta. O sucesso da demanda depende menos da demonstração teórica do dolo e mais da comprovação fática de quem agiu com a diligência necessária e quem falhou no dever de cautela.
O reconhecimento judicial da nulidade ou a condenação em perdas e danos dependerá da capacidade do advogado em articular a prova documental (conversas de WhatsApp, comprovantes, áudios) com as teorias da aparência e do erro substancial. O cenário jurídico atual demanda profissionais que compreendam não apenas a lei, mas a estratégia processual para mitigar danos em tempo real.
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Insights sobre o tema
- Erro vs. Dolo: Estrategicamente, alegar Erro Substancial (Art. 138 CC) é frequentemente mais eficaz do que Dolo de Terceiro (Art. 148 CC), pois dispensa a difícil prova de que a outra parte sabia da fraude.
- O Poder do Recibo (DUT): A assinatura do documento de transferência ou a entrega das chaves cria uma presunção de validade do negócio. Quem assinou e entregou sem receber assume um risco altíssimo sob a ótica da Teoria da Aparência.
- Investigação Defensiva: A atuação não pode se limitar ao processo cível. O rastreamento do dinheiro e a identificação dos estelionatários via Inquérito Policial são fundamentais para a efetividade da execução futura.
- A “Mentira Inocente”: A parte que aceita mentir sobre seu grau de parentesco ou relação com o intermediário a pedido deste (ex: “fala que é meu primo para facilitar”) geralmente atrai para si a responsabilidade civil pelo ilícito, mesmo sendo vítima do golpe financeiro.
- Agilidade Bancária: O Mecanismo Especial de Devolução (MED) do PIX deve ser acionado nas primeiras horas. Aguardar a tutela jurisdicional para bloquear valores costuma ser ineficaz dada a rapidez da pulverização do dinheiro pelos criminosos.
Perguntas e Respostas
1. Por que é difícil anular o negócio baseando-se apenas no Art. 148 do Código Civil?
Porque o artigo exige que o beneficiário (a outra parte do negócio) soubesse ou devesse saber do dolo. Em fraudes bem elaboradas, o estelionatário engana ambas as partes, tornando difícil provar a má-fé ou ciência do outro contratante.
2. O que é a Teoria da Aparência no contexto do golpe do intermediário?
É o princípio que protege quem confiou em uma situação de aparente legalidade. Se o vendedor entrega o carro ou assina o recibo (DUT) antes de receber, ele cria para o comprador a aparência de que a negociação feita com o intermediário é válida e autorizada.
3. Qual a importância do Inquérito Policial para a ação cível de anulação?
O Inquérito Policial possui ferramentas de investigação mais robustas, como a quebra de sigilo bancário e telemático, essenciais para rastrear o dinheiro e provar a dinâmica do golpe. Essas provas podem ser “emprestadas” para fortalecer a tese no processo cível.
4. Como o comportamento das partes durante a vistoria do bem influencia a sentença?
O juiz analisará quem faltou com a verdade. Se o vendedor ou comprador omitiram informações ou mentiram sobre sua relação com o intermediário (ex: confirmando falsamente que o intermediário era um sócio), essa conduta viola a boa-fé objetiva e pode determinar quem arcará com o prejuízo.
5. O banco pode ser responsabilizado nesses casos?
Em regra, a culpa é de terceiros. Porém, a responsabilidade do banco pode ser invocada se houver falha interna de segurança, como a abertura de conta corrente com documentos falsos utilizada pelo golpista (Súmula 479 do STJ), mas isso exige prova específica do nexo causal.
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Acesse a lei relacionada em Código Civil – Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002
Este artigo teve a curadoria da equipe da Legale Educacional e foi escrito utilizando inteligência artificial a partir do seu conteúdo original disponível em https://www.conjur.com.br/2025-dez-04/tj-df-constata-golpe-do-falso-intermediario-e-anula-compra-de-veiculo/.