O regime jurídico tributário brasileiro enfrenta, historicamente, um dilema complexo entre a necessidade de arrecadação estatal e a preservação da atividade econômica privada.
Dentro desse cenário, emerge uma figura jurídica de extrema relevância e controvérsia: o devedor contumaz.
A distinção entre o mero inadimplente e aquele que faz do não pagamento de tributos uma estratégia de negócios é um dos debates mais acalorados no Direito Tributário e Aduaneiro contemporâneo.
Compreender a profundidade dessa qualificação exige uma análise técnica que transita pelo Direito Constitucional, Penal e Administrativo.
Não se trata apenas de valores em aberto, mas da intenção do agente econômico e dos impactos dessa conduta na livre concorrência.
A Conceituação Jurídica do Devedor Contumaz
O conceito de devedor contumaz distancia-se radicalmente da figura do devedor eventual.
O inadimplente eventual é aquele empresário que, por dificuldades financeiras momentâneas ou questões de fluxo de caixa, deixa de recolher tributos devidos.
Nesse caso, a conduta é passiva e, muitas vezes, involuntária diante da crise econômica.
Já o devedor contumaz estrutura sua operação comercial baseada na inadimplência sistemática.
Ele precifica seus produtos ou serviços abaixo do custo de mercado, utilizando a “margem” que seria destinada ao Fisco como vantagem competitiva predatória.
Essa prática fere mortalmente o princípio da livre concorrência, previsto no artigo 170, IV, da Constituição Federal.
Ao atuar dessa forma, o agente não apenas lesa o Erário, mas desequilibra todo o setor econômico em que atua, forçando concorrentes que cumprem suas obrigações a saírem do mercado.
A caracterização jurídica, portanto, depende da comprovação do dolo e da habitualidade.
É necessário demonstrar que a inadimplência não é um acidente de percurso, mas o “modus operandi” da pessoa jurídica.
Para os profissionais que desejam aprofundar-se nas implicações penais dessa conduta, o estudo da Lei dos Crimes contra a Ordem Tributaria é fundamental para distinguir o ilícito civil do ilícito penal.
O Impacto no Direito Aduaneiro e no Comércio Exterior
No universo aduaneiro, a figura do devedor contumaz ganha contornos ainda mais complexos e danosos.
As operações de comércio exterior envolvem volumes financeiros expressivos e uma cadeia logística intrincada.
A fraude tributária na importação, muitas vezes associada à figura do devedor contumaz, manifesta-se através da interposição fraudulenta de terceiros.
Empresas “de fachada” ou “laranjas” são criadas com o único intuito de realizar importações, acumular débitos tributários e, posteriormente, serem abandonadas.
Os reais beneficiários da operação ocultam-se por trás dessas estruturas societárias frágeis para blindar seu patrimônio pessoal e empresarial.
A legislação aduaneira prevê mecanismos severos de controle, como a pena de perdimento de bens.
O Decreto-Lei nº 1.455/76 e o Regulamento Aduaneiro fornecem a base legal para combater essas práticas.
Contudo, a identificação precisa do sujeito passivo e a desconsideração da personalidade jurídica nessas operações exigem um trabalho probatório robusto por parte da fiscalização.
A aplicação de Regimes Especiais de Fiscalização (REF) torna-se uma ferramenta administrativa comum nesses casos.
Esses regimes impõem obrigações acessórias mais rigorosas, exigência de garantias para o desembaraço aduaneiro e monitoramento ininterrupto das atividades do importador.
Limites Constitucionais e as Sanções Políticas
O combate ao devedor contumaz esbarra em uma linha tênue desenhada pelo Supremo Tribunal Federal (STF): a vedação às sanções políticas.
As Súmulas 70, 323 e 547 do STF consolidaram o entendimento de que o Estado não pode utilizar meios coercitivos indiretos para cobrar tributos.
Isso significa que é inconstitucional apreender mercadorias ou interditar estabelecimentos como forma de coagir o contribuinte ao pagamento de débitos.
Entretanto, a jurisprudência mais recente tem buscado diferenciar a sanção política da regulação necessária do mercado.
O STF tem sinalizado que medidas administrativas destinadas a coibir a concorrência desleal provocada pelo devedor contumaz são válidas, desde que respeitem o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa.
A distinção fundamental reside na finalidade da medida.
Se o objetivo é meramente arrecadatório (cobrar o passado), configura-se sanção política inadmissível.
Se o objetivo é regulatório e preventivo (evitar novos danos ao mercado e à coletividade no futuro), a medida pode ser considerada constitucional.
Para advogados tributaristas, compreender essa nuance é essencial para a defesa de seus clientes ou para a atuação no contencioso estratégico.
Uma formação sólida, como a encontrada na Pós-Graduação em Direito Tributário e Processo Tributário, permite ao profissional navegar por essas águas turbulentas com maior segurança técnica.
O Conflito de Princípios: Livre Iniciativa versus Ordem Econômica
A defesa do contribuinte classificado como contumaz frequentemente invoca o princípio da livre iniciativa (art. 170, caput, da CF).
Argumenta-se que restrições operacionais, como o cancelamento de inscrição estadual ou a imposição de recolhimento antecipado, inviabilizam a atividade empresarial.
Por outro lado, o Estado invoca a proteção da ordem econômica e a capacidade contributiva.
O argumento estatal baseia-se na premissa de que a livre iniciativa não pode servir de escudo para práticas ilícitas que destroem a base econômica da sociedade.
O enriquecimento ilícito decorrente da apropriação indébita de tributos (especialmente os indiretos, como ICMS e IPI, cujo encargo financeiro é repassado ao consumidor final) não encontra amparo constitucional.
A atuação jurídica nesse campo exige a ponderação de interesses.
O advogado deve estar apto a demonstrar, no caso concreto, se a medida fiscalizatória é razoável e proporcional ou se excede os limites do poder de polícia, configurando abuso de autoridade.
Tipificação Penal e a Apropriação Indébita Tributária
A discussão sobre o devedor contumaz não se encerra na esfera administrativa ou cível; ela adentra vigorosamente a esfera penal.
O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RHC 163.334, firmou tese sobre a criminalização do não recolhimento de ICMS declarado.
Ficou estabelecido que o contribuinte que, de forma contumaz e com dolo de apropriação, deixa de recolher o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço, incide no tipo penal do artigo 2º, inciso II, da Lei nº 8.137/1990.
Essa decisão representou um marco no combate à inadimplência estratégica.
Antes desse entendimento, a defesa comum era tratar o não pagamento como mero ilícito civil, passível apenas de execução fiscal.
Agora, a contumácia torna-se elemento caracterizador do dolo, transformando a dívida em crime.
Isso exige dos advogados criminalistas e tributaristas uma atuação preventiva de “compliance” muito mais rigorosa.
É preciso comprovar a ausência de dolo e a existência de dificuldades financeiras reais que impediram o recolhimento, afastando a tese de apropriação indébita intencional.
A linha de defesa deve focar na descaracterização da habitualidade fraudulenta.
A Importância do Compliance Tributário e Aduaneiro
Diante do endurecimento da jurisprudência e das ferramentas de fiscalização, a governança corporativa torna-se a principal barreira contra a qualificação de devedor contumaz.
Programas de conformidade (compliance) eficazes devem monitorar não apenas o recolhimento de tributos, mas também a regularidade dos fornecedores e a cadeia de suprimentos.
No Direito Aduaneiro, a diligência prévia (due diligence) é vital.
Importar de empresas sem capacidade operacional comprovada ou participar de cadeias onde há sonegação sistêmica pode atrair a responsabilidade solidária e as sanções dos Regimes Especiais.
O advogado moderno deve atuar como um consultor de riscos.
Ele deve orientar a empresa a manter registros contábeis impecáveis e a justificar economicamente suas operações, evitando estruturas que, embora lícitas na aparência, careçam de propósito negocial (business purpose).
A simulação e o abuso de forma são conceitos amplamente utilizados pelo Fisco para desconstituir planejamentos tributários agressivos que flertam com a figura do devedor contumaz.
Regimes Especiais como Ferramenta de Controle
Os Regimes Especiais de Fiscalização, previstos tanto em âmbito federal quanto estadual, são a resposta administrativa ao devedor contumaz.
Esses regimes podem incluir a obrigatoriedade de pagamento do tributo a cada operação realizada, a vigilância fiscal permanente dentro do estabelecimento e a redução dos prazos de recolhimento.
Embora sejam medidas duras, o Judiciário tem tendido a validá-las quando devidamente fundamentadas.
A legalidade do regime especial depende da estrita observância do artigo 146, III, da Constituição, que reserva à Lei Complementar a definição de normas gerais de direito tributário.
Muitas vezes, os Estados instituem tais regimes por meio de Decretos ou Portarias, o que abre flanco para contestações judiciais baseadas na violação do princípio da legalidade.
A defesa técnica deve analisar se o regime imposto respeita a hierarquia das normas e se não inviabiliza, na prática, a continuidade da empresa, o que configuraria sanção política indireta.
A análise da proporcionalidade é a chave.
Uma medida que torna a operação logisticamente impossível é inconstitucional, mesmo que o contribuinte seja devedor.
O Estado deve cobrar, mas não pode destruir a fonte produtora de riqueza de forma arbitrária.
A complexidade desse tema reside na intersecção de múltiplas áreas do Direito.
Não é possível analisar o fenômeno do devedor contumaz apenas com a lente do Código Tributário Nacional.
É necessário integrar os conceitos de Direito Penal Econômico, Direito Constitucional e Direito Administrativo Sancionador.
Para o profissional do Direito, dominar essa matéria é um diferencial competitivo significativo em um mercado onde o Fisco está cada vez mais tecnológico e agressivo em suas teses.
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Insights sobre o Tema
A qualificação de um contribuinte como “devedor contumaz” altera a natureza da relação jurídico-tributária, deslocando o eixo da simples cobrança de dívida para a proteção da ordem econômica. O elemento subjetivo (dolo) passa a ser tão relevante quanto o elemento objetivo (inadimplência). A jurisprudência atual do STF e do STJ caminha para um endurecimento contra práticas que utilizam o não pagamento de tributos como modelo de negócio, validando medidas administrativas restritivas, desde que não configurem sanção política estrita (fechamento de portas). No âmbito aduaneiro, essa figura se confunde frequentemente com a interposição fraudulenta, exigindo do advogado expertise em rastreabilidade de operações e defesa em processos de perdimento.
Perguntas e Respostas
1. Qual a principal diferença jurídica entre o inadimplente eventual e o devedor contumaz?
A diferença reside na habitualidade e na intenção (dolo). O inadimplente eventual deixa de pagar por dificuldades momentâneas, enquanto o contumaz utiliza a inadimplência como estratégia deliberada de negócio para obter vantagem competitiva desleal e lucro ilícito.
2. O não pagamento de ICMS declarado pode ser considerado crime?
Sim. Conforme entendimento do STF no RHC 163.334, o não recolhimento de ICMS cobrado do consumidor final, quando realizado de forma contumaz e com dolo de apropriação, configura crime contra a ordem tributária (apropriação indébita tributária).
3. O que são os Regimes Especiais de Fiscalização aplicados a devedores contumazes?
São medidas administrativas que impõem regras mais rígidas ao contribuinte, como exigência de pagamento antecipado a cada operação, fiscalização ininterrupta e obrigações acessórias diferenciadas, visando evitar o aumento do passivo tributário e proteger a concorrência.
4. As sanções políticas são permitidas contra devedores contumazes?
Em regra, não. O STF, através das Súmulas 70, 323 e 547, veda sanções que coajam o pagamento de tributos por vias oblíquas (como apreensão de mercadorias). Contudo, medidas regulatórias proporcionais que visam impedir a continuidade da lesão à ordem econômica têm sido admitidas, desde que não inviabilizem totalmente a atividade lícita.
5. Como o conceito de devedor contumaz afeta o Direito Aduaneiro?
No comércio exterior, o devedor contumaz frequentemente opera através de interpostas pessoas (“laranjas”) para ocultar o real beneficiário e evitar a responsabilidade tributária. Isso pode acarretar a pena de perdimento das mercadorias e a inaptidão do CNPJ dos envolvidos.
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Acesse a lei relacionada em Lei nº 8.137/1990
Este artigo teve a curadoria da equipe da Legale Educacional e foi escrito utilizando inteligência artificial a partir do seu conteúdo original disponível em https://www.conjur.com.br/2025-dez-16/o-pl-do-devedor-contumaz-e-sua-aplicacao-no-universo-aduaneiro/.