A intersecção entre o Direito Tributário e o Direito Penal transformou-se em um campo minado nos últimos anos. O que antes era tratado predominantemente na esfera da execução fiscal, agora, sob a ótica do Supremo Tribunal Federal, adentra a esfera da liberdade individual. O foco central dessas discussões reside na criminalização do não recolhimento de tributos declarados (especialmente o ICMS) e na figura imprecisa do devedor contumaz.
Para o advogado criminalista de elite, não basta compreender a letra da lei; é necessário identificar as falhas tectônicas da dogmática jurídica atual. O cenário exige estratégias de defesa que combatam a utilização do Direito Penal como prima ratio de arrecadação — um “cobrador de impostos com distintivo de polícia”.
A Tipificação e a Crítica à “Prisão por Dívida”
A controvérsia orbita o artigo 2º, inciso II, da Lei nº 8.137/90. O dispositivo criminaliza a conduta de deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação.
Embora a Constituição e o Pacto de San José da Costa Rica vedem a prisão por dívida (salvo alimentos), o entendimento atual das Cortes Superiores contornou essa garantia através de uma interpretação que equipara a inadimplência fiscal à apropriação indébita. O advogado deve estar atento: o sistema penal está sendo instrumentalizado para coagir o pagamento, desvirtuando o princípio da intervenção mínima.
A defesa técnica, portanto, não deve apenas negar o fato, mas questionar a própria tipicidade da conduta em um cenário onde a inadimplência é tratada como crime patrimonial contra o Estado. O estudo aprofundado da Lei dos Crimes contra a Ordem Tributária é a base para desconstruir essas presunções punitivistas.
O RHC 163.334 e o Conceito Aberto de Contumácia
O julgamento do RHC 163.334 pelo STF foi o divisor de águas que fixou a tese: o contribuinte que deixa de recolher o ICMS cobrado do adquirente, de forma contumaz e com dolo de apropriação, incide no tipo penal. Contudo, essa decisão trouxe uma insegurança jurídica latente.
O problema da Contumácia: A lei não define o que é ser “contumaz”.
- São três meses de inadimplência? Seis meses? Um ano?
- A ausência de um marco temporal objetivo deixa a liberdade do réu à mercê da subjetividade judicial.
Para a defesa, explorar essa lacuna é vital. Sem taxatividade, a “contumácia” torna-se um conceito fluido que viola a legalidade estrita. O advogado deve demonstrar que a habitualidade alegada pela acusação não reflete uma estratégia criminosa, mas sim uma dificuldade estrutural, atacando a falta de critérios objetivos na denúncia.
A Ficção Jurídica do “Repassador” e a Realidade Financeira
A tese vencedora no STF baseia-se na ideia de que o empresário apenas “repassa” o ICMS, agindo como fiel depositário de um valor que nunca lhe pertenceu. Essa é uma ficção jurídica que ignora a realidade contábil.
Financeiramente, o valor da venda (incluindo o tributo embutido) ingressa no caixa único da empresa. Não existe uma conta bancária segregada onde o ICMS fica aguardando o repasse ao Estado. O dinheiro entra como receita bruta e é utilizado para pagar fornecedores, folha salarial e custos operacionais.
Uma defesa técnica robusta deve explorar essa realidade econômica: o inadimplemento do ICMS próprio declarado é, na essência, o não pagamento de uma dívida com recursos próprios da empresa, e não a apropriação de algo alheio. Demonstrar que o fluxo de caixa é unitário enfraquece a narrativa de que houve apropriação dolosa de recursos de terceiros.
A Batalha do Dolo: Inversão do Ônus da Prova na Prática
Teoricamente, cabe ao Ministério Público provar o dolo específico (a vontade deliberada de se apropriar do dinheiro público). Na prática forense, contudo, o advogado enfrenta uma inversão diabólica do ônus da prova.
Diante da declaração do tributo e do não pagamento reiterado, o Judiciário tende a presumir o dolo (res ipsa loquitur). A estratégia de defesa não pode ser passiva. É necessário produzir prova negativa do dolo, demonstrando que a inadimplência foi uma consequência indesejada da gestão, e não um fim em si mesmo.
O argumento de que a empresa utilizou a inadimplência como “vantagem competitiva predatória” (concorrência desleal) é a munição favorita da acusação. A defesa deve contrapor isso provando que a empresa não enriqueceu com o não pagamento, mas apenas tentou sobreviver.
Inexigibilidade de Conduta Diversa: O Paradoxo da Sobrevivência
A tese da inexigibilidade de conduta diversa é uma das poucas tábuas de salvação, mas o standard probatório exigido pelos tribunais é cruel. A jurisprudência atual, muitas vezes, exige que a empresa esteja em estado falimentar para aceitar essa excludente.
Cria-se um paradoxo perverso: para não ser preso, o empresário deve decretar a morte da atividade econômica. Se ele paga a conta de luz ou os salários para manter a empresa aberta, o Estado argumenta que ele “escolheu” não pagar o tributo.
Para vencer essa barreira, a defesa precisa de um arsenal probatório contundente:
- Laudos periciais contábeis demonstrando a inviabilidade do pagamento;
- Prova de que o pagamento do tributo causaria o fechamento imediato da empresa;
- Demonstração de que a prioridade foi a verba alimentar (salários) em detrimento do Fisco.
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Responsabilidade Penal e a Súmula Vinculante 24
A Súmula Vinculante 24 estabelece que o crime material contra a ordem tributária não se tipifica antes do lançamento definitivo do tributo. A discussão técnica aqui é refinada: o crime do art. 2º, II, é formal ou material?
Embora haja debate, a constituição definitiva do crédito tributário permanece relevante, pois a extinção do débito (pagamento) extingue a punibilidade a qualquer tempo. Isso reforça a crítica de que o processo penal virou um instrumento de cobrança: pagou, está livre. O advogado deve monitorar o processo administrativo fiscal (PAF), pois a anulação do débito na esfera administrativa tranca a ação penal por falta de justa causa.
Ademais, é crucial combater a responsabilidade penal objetiva. Sócios que não exercem administração de fato não podem responder pelos débitos. A defesa deve focar na individualização da conduta, provando quem detinha o poder de gestão e decisão financeira.
Conclusão: A Advocacia Contra o Utilitarismo Penal
O endurecimento da jurisprudência exige um advogado que não seja apenas um leitor de leis, mas um estrategista capaz de questionar a dogmática. O Estado utiliza o Direito Penal para garantir a arrecadação, e a defesa técnica qualificada é a única barreira contra esse avanço punitivo.
Cabe ao advogado distinguir o sonegador fraudulento do empresário em crise, desafiando a presunção de dolo e a imprecisão do conceito de contumácia.
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Insights Críticos sobre o Tema
- Direito Penal como Cobrança: A possibilidade de extinção da punibilidade pelo pagamento a qualquer tempo revela a natureza utilitarista da ação penal: o objetivo não é a pena, é o dinheiro.
- Insegurança da Contumácia: A falta de definição legal sobre o que constitui “contumácia” gera um vácuo de segurança jurídica, permitindo denúncias arbitrárias baseadas em critérios subjetivos do MP.
- Ficção do Repasse: A tese de que o empresário “apropria-se” do ICMS ignora a unicidade do caixa empresarial e a realidade econômica da gestão financeira.
- Prova Diabólica: Na prática, o ônus da prova do dolo é invertido; o réu precisa provar sua boa-fé e a inexigibilidade de conduta diversa através de perícia robusta, pois a inadimplência gera presunção de culpa.
Perguntas e Respostas
1. A mera inadimplência de ICMS declarado gera prisão imediata?
Não necessariamente, mas o risco aumentou drasticamente. Após a decisão do STF, se houver habitualidade (contumácia) e o juiz entender que houve dolo de apropriação, a conduta é criminosa. A defesa deve atuar preventivamente para descaracterizar o dolo antes mesmo da denúncia.
2. O que fazer se a empresa não tem dinheiro para pagar o imposto?
Documentar tudo. A tese de “inexigibilidade de conduta diversa” só é aceita com prova pericial contundente de que o pagamento do tributo implicaria na falência da empresa ou no não pagamento de salários. Alegações genéricas de “crise” são rejeitadas sumariamente pelos tribunais.
3. O pagamento extingue o crime mesmo após a condenação?
Sim. Nos crimes tributários, o pagamento integral do débito (incluindo acessórios) a qualquer tempo extingue a punibilidade. Isso transforma o processo penal em uma ferramenta de pressão para o adimplemento.
4. Sócio que não administra a empresa responde pelo crime?
Pela lei, não deveria. A responsabilidade penal é subjetiva. Porém, denúncias genéricas são comuns. A defesa deve provar documentalmente (contrato social, atas, e-mails) que o sócio não tinha poder de gestão financeira nem decisão sobre o recolhimento de tributos.
5. Qual a diferença entre sonegação e inadimplência declarada?
Sonegação envolve fraude, omissão de receita ou mentira ao Fisco (Art. 1º). A inadimplência declarada (Art. 2º, II) ocorre quando o contribuinte avisa ao Fisco quanto deve, mas não paga. A batalha jurídica atual é justamente sobre a criminalização dessa segunda conduta quando ela é habitual.
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Acesse a lei relacionada em Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990
Este artigo teve a curadoria da equipe da Legale Educacional e foi escrito utilizando inteligência artificial a partir do seu conteúdo original disponível em https://www.conjur.com.br/2025-dez-15/o-devedor-contumaz-na-mira-da-justica-criminal/.