A complexidade das transações financeiras modernas trouxe para o ordenamento jurídico brasileiro a necessidade de adaptação constante. Entre os instrumentos importados do direito anglo-saxão que ganharam relevância no cenário nacional, destaca-se a conta escrow. Trata-se de um mecanismo de garantia frequentemente utilizado em operações de fusões e aquisições (M&A), transações imobiliárias e grandes contratos comerciais. Contudo, a sua importação para um sistema de Civil Law como o brasileiro criou zonas cinzentas que, lamentavelmente, vêm sendo exploradas para fins ilícitos, como a ocultação de ativos em processos de execução.
O advogado contemporâneo precisa compreender profundamente as nuances desse contrato atípico. Não basta entender a sua função econômica de mitigação de risco. É imperioso analisar como o Poder Judiciário tem enfrentado a utilização desvirtuada desse instituto. A blindagem patrimonial, quando ultrapassa os limites do planejamento lícito, configura fraude. A conta escrow, nesse contexto, pode deixar de ser uma garantia legítima para se tornar um esconderijo de capitais.
No entanto, atacar essa estrutura exige precisão técnica. Confundir institutos ou errar na estratégia processual pode custar a satisfação do crédito. Abaixo, dissecamos a natureza jurídica, as armadilhas processuais e as estratégias avançadas para penetrar essa blindagem.
A Natureza Jurídica: O Perigo do “Trust” à Brasileira
A conta escrow funciona mediante um contrato acessório tripartite, envolvendo depositante, beneficiário e o agente de escrow (fiel depositário). A função é assegurar a custódia de recursos por um terceiro imparcial até o cumprimento de condições. O amparo legal reside no princípio da liberdade contratual e na atipicidade dos negócios jurídicos (artigo 425 do Código Civil).
Porém, há um ponto dogmático crucial: o Brasil não possui a figura do Trust pleno do direito anglo-saxão.
- No Trust (Common Law): A propriedade é transferida fiduciariamente ao trustee.
- No Escrow (Brasil): Muitas vezes estamos diante de um contrato de depósito ou mandato com cláusulas especiais.
Essa distinção muda tudo na execução. Se o contrato de escrow for meramente obrigacional (um “contrato de gaveta” não registrado) e não configurar uma alienação fiduciária ou patrimônio de afetação legalmente constituído (como na incorporação imobiliária), a cláusula de “segregação patrimonial” pode ser inoponível a terceiros credores. Ou seja, se for apenas depósito, o dinheiro juridicamente ainda pertence ao devedor, e a barreira de proteção é muito mais frágil do que aparenta.
Estratégia Processual: Penhora de Dinheiro vs. Penhora de Créditos
O erro mais comum dos advogados é solicitar a penhora de dinheiro via SISBAJUD diretamente contra a conta escrow. Frequentemente, o resultado é frustrante ou nulo. Isso ocorre porque muitas contas escrow são estruturadas como contas “omnibus” (contas globais em nome do agente) ou o sistema não identifica a titularidade direta do devedor devido à natureza de custódia.
A técnica processual correta, fundamentada no Art. 855 e seguintes do Código de Processo Civil (CPC), não é buscar a penhora do dinheiro “em si”, mas sim a penhora de direitos creditórios ou da expectativa de direito.
O pedido deve ser cirúrgico:
- Requerer a penhora no rosto dos autos ou mediante ofício ao Agente de Escrow.
- A ordem não é para bloquear a conta inteira (o que poderia inviabilizar o negócio garantido e gerar nulidade), mas para que o Agente, ao liquidar a operação ou verificar o implemento da condição, deposite o saldo em juízo em vez de devolvê-lo ao devedor.
Dessa forma, atinge-se o “crédito futuro” que o devedor possui contra o agente de escrow, contornando a blindagem da conta gráfica.
Fraude à Execução vs. Fraude Contra Credores: O Timing é Tudo
Identificar o momento da constituição da conta escrow define o remédio processual. O advogado deve dominar essa distinção para não ter seu pedido indeferido.
1. Fraude à Execução (Art. 792 do CPC):
Se o depósito na conta escrow ocorreu após a citação do devedor em processo capaz de reduzi-lo à insolvência, configura-se fraude à execução. A ineficácia do negócio é declarada incidentalmente nos próprios autos, sendo o caminho mais célere.
2. Fraude Contra Credores:
Se a estrutura foi montada antes da lide, o cenário é mais complexo. O juiz da execução pode entender que é necessária uma Ação Pauliana para anular o negócio jurídico, o que representa um pesadelo temporal para o credor.
Para combater a prática de “blindagem prévia”, o advogado deve demonstrar o consilium fraudis (má-fé e conluio) de forma robusta, argumentando que a estrutura não possui racionalidade econômica (simulação) e visou apenas fraudar futuros credores, tentando trazer a discussão para o campo da invalidade ou ineficácia dentro da execução, embora o risco de remessa às vias ordinárias exista.
Para aprofundar-se nessas distinções vitais, o estudo de Ação Monitória e Recuperação de Crédito é indispensável.
A Responsabilidade Solidária das Fintechs e Agentes de Escrow
As instituições que operam as contas escrow não são meras espectadoras. Elas possuem deveres estritos de Compliance e prevenção à lavagem de dinheiro (Lei nº 9.613/98 e normas do Bacen).
Se um agente de escrow permite a movimentação de vultuosas quantias sem origem clara ou lastro contratual idôneo (falha no Know Your Customer – KYC), ele deixa de ser um terceiro neutro. Juridicamente, ele pode ser considerado partícipe da fraude.
O Insight de Ouro: O advogado deve avaliar a responsabilização civil do agente de escrow com base nos artigos 186 e 927 do Código Civil. Se a instituição facilitou a ocultação patrimonial, dolosa ou culposamente, pode ser chamada a responder solidariamente pela dívida. Essa é uma tese fortíssima e ainda pouco explorada no contencioso de massa.
Ferramentas Tecnológicas: O Poder do CCS
Além do SISBAJUD e do SNIPER, uma ferramenta frequentemente subutilizada é o CCS (Cadastro de Clientes do Sistema Financeiro Nacional).
O SNIPER mostra vínculos, mas o CCS revela quem movimenta a conta. Muitas vezes, o devedor não aparece como titular da conta escrow, mas consta no CCS como procurador ou representante da empresa “casca” (shell company) titular da conta. Esse vínculo de representação é a prova cabal da confusão patrimonial.
Ao identificar que o devedor movimenta, como procurador, contas de terceiros ou empresas de fachada usadas para escrow, constrói-se o alicerce probatório perfeito para o Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica (IDPJ).
O Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica (IDPJ)
Quando a conta escrow é utilizada por interpostas pessoas (sócios ocultando bens na empresa ou vice-versa), o IDPJ (art. 50 do CC e 133 do CPC) é a via adequada.
A prova obtida via CCS (o devedor movimentando a conta da empresa escrow) demonstra o desvio de finalidade e a confusão patrimonial. Não basta alegar inadimplência; é preciso provar o dolo e a manobra. A “desconsideração inversa” também se aplica se o sócio devedor estiver usando a conta escrow da empresa para esconder patrimônio pessoal.
Dominar essa técnica processual é o que separa o advogado que apenas peticiona daquele que efetivamente recupera ativos. Para tanto, recomenda-se o curso especializado em Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica.
Considerações Finais
A “blindagem” patrimonial perfeita é um mito, mas derrubá-la exige mais do que petições padronizadas. O advogado deve atuar como um estrategista, diferenciando a penhora de crédito da penhora de dinheiro, identificando o timing para alegar a fraude correta e, sobretudo, questionando a responsabilidade das instituições financeiras que operam nas sombras.
A conta escrow não é um cofre inviolável; é um contrato. E no Direito brasileiro, nenhum contrato pode servir de escudo para a má-fé. A desconstrução de estruturas simuladas é a nova fronteira da advocacia executiva.
Perguntas e Respostas
Qual a diferença prática entre penhorar o dinheiro e penhorar o direito na conta escrow?
Penhorar o dinheiro tenta bloquear o saldo direto (o que falha se a conta for do agente). Penhorar o direito creditório (Art. 855 CPC) incide sobre a expectativa do devedor de receber aquele valor no futuro, obrigando o agente a depositar em juízo ao final do contrato, o que é processualmente mais seguro e eficaz.
O agente de escrow pode ser responsabilizado pela dívida do executado?
Sim, solidariamente. Se ficar comprovado que o agente (banco ou fintech) agiu com negligência no compliance (KYC) ou má-fé, permitindo que sua estrutura fosse usada para fraude contra credores ou lavagem de dinheiro, ele pode responder civilmente pelos danos causados (Arts. 186 e 927 do CC).
O que fazer se a conta escrow foi criada antes do processo de execução?
Cuidado com a alegação de Fraude à Execução, que pode ser indeferida. O cenário pode configurar Fraude Contra Credores. O ideal é buscar provas robustas de simulação ou má-fé para tentar resolver na execução, mas estar preparado para uma eventual Ação Pauliana (ou revocatória, na falência).
Como o CCS ajuda na investigação de contas escrow?
O CCS revela quem tem procuração para movimentar as contas. Se o devedor não é o titular, mas aparece como procurador de uma conta escrow em nome de terceiro, isso é um indício fortíssimo de interposição fraudulenta de pessoas, fundamentando o IDPJ.
Contratos de Escrow “de gaveta” têm validade contra o exequente?
Geralmente não. Para ter eficácia *erga omnes* (contra terceiros) e gerar segregação patrimonial real, o instrumento precisa ter publicidade (registro) ou amparo em lei específica (como patrimônio de afetação imobiliário). Contratos particulares simples não podem afastar a responsabilidade patrimonial do devedor perante terceiros.
Aprofunde seu conhecimento sobre o assunto na Wikipedia.
Acesse a lei relacionada em Lei nº 9.613, de 3 de Março de 1998
Este artigo teve a curadoria da equipe da Legale Educacional e foi escrito utilizando inteligência artificial a partir do seu conteúdo original disponível em https://www.conjur.com.br/2025-dez-05/justica-bloqueia-bens-de-fintech-que-usou-conta-escrow-para-ocultar-ativos/.