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Supralegalidade e Controle de Convencionalidade no Brasil

Artigo de Direito
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O Status Supralegal e o Controle de Convencionalidade no Ordenamento Jurídico Brasileiro

A dinâmica normativa do sistema jurídico brasileiro sofreu transformações profundas nas últimas décadas, especialmente no que tange à hierarquia das leis e à recepção de tratados internacionais. A clássica pirâmide de Kelsen, que por muito tempo serviu como modelo estático e seguro para a compreensão da validade das normas, já não comporta a complexidade exigida pela proteção contemporânea dos direitos fundamentais. Nesse cenário, emerge com força a teoria da supralegalidade, um conceito que redefiniu a forma como advogados, magistrados e doutrinadores devem interpretar a compatibilidade entre a legislação ordinária e os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil.

Compreender a supralegalidade não é apenas um exercício acadêmico de teoria do Estado. Trata-se de uma ferramenta prática indispensável para o operador do Direito que busca afastar a aplicação de leis internas incompatíveis com normas de direitos humanos. A jurisprudência dos tribunais superiores consolidou o entendimento de que os tratados internacionais de direitos humanos, quando não aprovados pelo rito especial das emendas constitucionais, ocupam um lugar intermediário: estão abaixo da Constituição, mas acima de toda a legislação ordinária.

A Evolução da Hierarquia das Normas no Brasil

Historicamente, o Supremo Tribunal Federal adotava uma postura de paridade hierárquica entre os tratados internacionais e as leis ordinárias federais. Isso significava que um tratado internacional poderia revogar uma lei anterior (critério cronológico) e, da mesma forma, uma lei federal posterior poderia revogar a aplicação interna de um tratado. Essa visão positivista clássica gerava insegurança jurídica e, muitas vezes, colocava o Estado brasileiro em situação de responsabilidade internacional por descumprimento de obrigações pactuadas.

A promulgação da Emenda Constitucional nº 45, em 2004, representou um divisor de águas. Ao acrescentar o parágrafo 3º ao artigo 5º da Constituição Federal, estabeleceu-se que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, seriam equivalentes às emendas constitucionais. Criou-se, portanto, a possibilidade de tratados com status constitucional, integrando formalmente o chamado bloco de constitucionalidade.

No entanto, restava uma lacuna interpretativa significativa. Qual seria o status dos tratados de direitos humanos aprovados antes da EC 45/2004, ou daqueles que fossem aprovados posteriormente, mas sem o quórum qualificado? A resposta a essa indagação moldou o atual sistema de controle de convencionalidade no país. O entendimento firmado foi o de que tais normas não poderiam ser equiparadas a leis comuns, dada a relevância material de seu conteúdo — a proteção da dignidade humana. Assim, nasceu a tese da supralegalidade.

Para o profissional que deseja dominar essas nuances e aplicá-las em peças processuais robustas, o aprofundamento técnico é essencial. Uma especialização focada, como a Pós-Graduação em Direito e Processo Constitucional, permite ao advogado navegar com segurança por essas teses que alteram o desfecho de litígios complexos.

O Caráter Supralegal e o Efeito Paralisante

A definição do status supralegal implica que os tratados de direitos humanos situados nessa posição hierárquica possuem o poder de paralisar a eficácia de qualquer norma infraconstitucional que lhes seja contrária. Não se trata de revogação formal, mas de uma invalidade material no caso concreto ou abstrato. A norma interna continua existindo no ordenamento, mas perde sua aplicabilidade por ser “inconvencional”.

Um exemplo clássico e fundamental para ilustrar essa aplicação é a questão da prisão civil do depositário infiel. A Constituição Federal, em sua redação original, previa tal possibilidade. Contudo, o Pacto de San José da Costa Rica (Convenção Americana sobre Direitos Humanos), do qual o Brasil é signatário, restringe a prisão civil por dívida apenas ao caso de inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia.

Diante do conflito aparente entre a norma constitucional (que permitia) e o tratado (que proibia), e considerando que o tratado possuía status supralegal, o STF editou a Súmula Vinculante nº 25. A decisão consagrou que é ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito. Nesse caso, a norma supralegal esvaziou a eficácia das leis processuais civis que regulamentavam a prisão e interpretou restritivamente o próprio texto constitucional.

O Controle de Convencionalidade na Prática Forense

A existência de normas supralegais exige que o advogado moderno realize um duplo filtro de validade em suas argumentações. Não basta mais verificar se uma lei, ato administrativo ou decisão judicial está em conformidade com a Constituição (controle de constitucionalidade). É imperativo verificar se o ato está em conformidade com os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil (controle de convencionalidade).

O controle de convencionalidade pode ser exercido de duas formas. A primeira é o controle concentrado, realizado tipicamente pelas cortes superiores, que analisam a compatibilidade da norma em abstrato. A segunda, e mais relevante para a advocacia do dia a dia, é o controle difuso. Qualquer juiz ou tribunal tem o dever de, ex officio ou mediante provocação, deixar de aplicar uma norma interna que viole um tratado de direitos humanos.

Ignorar essa camada de argumentação é negligenciar uma das ferramentas mais poderosas de defesa dos direitos individuais e coletivos. Em áreas como o Direito Penal, Direito de Família e Direito Administrativo, a invocação de normas supralegais pode ser o fator determinante para a liberdade de um réu, a garantia de convivência familiar ou a proteção contra arbitrariedades estatais.

Para aqueles que buscam uma compreensão holística de como esses direitos impactam todas as esferas jurídicas, a Pós-Graduação em Direitos Humanos oferece a base teórica e prática necessária para manejar o controle de convencionalidade com excelência técnica.

Diferença entre Inconstitucionalidade e Inconvencionalidade

É vital distinguir tecnicamente os dois vícios. A inconstitucionalidade ocorre quando há afronta à Constituição Federal. A inconvencionalidade ocorre quando há afronta a um tratado internacional. Quando um tratado tem status de emenda constitucional, a violação a ele é, simultaneamente, uma inconstitucionalidade e uma inconvencionalidade.

Porém, quando o tratado tem status supralegal, a lei que o contraria é “apenas” inconvencional. Na prática, o efeito é similar — a inaplicabilidade da lei — mas a fundamentação jurídica é distinta. O STF, ao analisar tais casos, não declara a lei nula, mas sim sem efeito, pois ela não encontra fundamento de validade na norma superior (o tratado). Isso demonstra que a pirâmide normativa brasileira se tornou um trapézio, onde o topo é ocupado pelo bloco de constitucionalidade e, logo abaixo, sustentando a validade das leis ordinárias, estão as normas supralegais.

A Interpretação Pro Homine

A jurisprudência supralegal impõe também a adoção do princípio pro homine ou da primazia da norma mais favorável. Em situações de conflito entre normas de direitos humanos (seja na Constituição, em tratados ou em leis), deve-se aplicar aquela que amplia a proteção ao indivíduo ou que restringe em menor grau os seus direitos.

Isso rompe com a rigidez hierárquica tradicional em favor de uma hierarquia axiológica. Se uma lei ordinária oferecer proteção mais ampla que um tratado supralegal, a lei prevalece. Se o tratado for mais protetivo que a lei, o tratado prevalece. Essa flexibilidade exige do operador do direito um conhecimento profundo não apenas da letra da lei, mas dos princípios de hermenêutica constitucional.

Impactos Processuais e o Papel do STJ

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) também tem papel crucial na consolidação da supralegalidade. Em diversas decisões, a corte tem reformado acórdãos estaduais que ignoram diretrizes internacionais, especialmente em matérias envolvendo audiências de custódia, violência doméstica e direitos de minorias. A ausência da realização de audiência de custódia, prevista na Convenção Americana, por exemplo, gera nulidade da prisão, um entendimento que demorou a ser pacificado e que decorre diretamente da força supralegal do tratado.

O advogado que não fundamenta seus recursos com base na violação de tratados internacionais corre o risco de não ter suas teses plenamente apreciadas. Além disso, o esgotamento das vias internas, incluindo a alegação de violação a tratados, é pré-requisito para eventual denúncia do Estado brasileiro perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Portanto, a advocacia em nível supralegal é também uma advocacia preventiva e estratégica em âmbito internacional.

Desafios Contemporâneos

Apesar dos avanços, a aplicação da jurisprudência supralegal ainda enfrenta resistências. O “bairrismo jurídico”, que privilegia a legislação doméstica em detrimento das normas internacionais, ainda é uma realidade em muitas comarcas. Superar essa barreira cultural exige uma argumentação técnica refinada, capaz de demonstrar que a soberania nacional não é violada, mas sim reafirmada, quando o Estado cumpre os compromissos internacionais que livremente assumiu.

A modernidade jurídica não reside na criação de novas leis, mas na capacidade de integrar o sistema jurídico interno ao sistema global de proteção de direitos, criando uma teia normativa que blinde o cidadão contra excessos. A jurisprudência supralegal é, portanto, o mecanismo de defesa contra o isolacionismo jurídico e o retrocesso social.

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Insights do Artigo

O conceito de supralegalidade altera a estrutura clássica da pirâmide de Kelsen no Brasil, inserindo um nível intermediário entre a Constituição e as leis ordinárias.
Tratados de Direitos Humanos aprovados sem o quórum de emenda constitucional paralisam a eficácia de leis ordinárias conflitantes, gerando o fenômeno da inconvencionalidade.
O controle de convencionalidade deve ser realizado por todos os juízes (controle difuso) e deve constar no arsenal argumentativo de advogados em todas as instâncias.
O princípio pro homine determina que, em conflito de normas de direitos humanos, aplica-se sempre a regra mais benéfica ao indivíduo, independentemente de sua posição hierárquica formal.
A Súmula Vinculante 25 do STF é o marco prático mais evidente da supralegalidade, proibindo a prisão do depositário infiel com base no Pacto de San José da Costa Rica.

Perguntas e Respostas

1. O que acontece se uma lei ordinária federal entrar em conflito com um tratado internacional de direitos humanos com status supralegal?
A lei ordinária não é revogada automaticamente, mas sofre um “efeito paralisante”. Ela perde sua eficácia e aplicabilidade no caso concreto ou de forma abstrata, por ser considerada inconvencional.

2. Todo tratado internacional assinado pelo Brasil tem status supralegal?
Não. Apenas os tratados que versam sobre Direitos Humanos e que não foram aprovados pelo rito qualificado do art. 5º, § 3º da Constituição (dois turnos, 3/5 dos votos em ambas as casas) possuem status supralegal. Tratados comerciais ou de outra natureza possuem status de lei ordinária.

3. Qual a diferença entre controle de constitucionalidade e controle de convencionalidade?
O controle de constitucionalidade verifica a compatibilidade de uma norma com a Constituição Federal. O controle de convencionalidade verifica a compatibilidade da norma interna com os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo país.

4. Um juiz de primeira instância pode deixar de aplicar uma lei com base em um tratado internacional?
Sim. Isso configura o controle difuso de convencionalidade. O magistrado tem o dever de afastar a aplicação de norma interna que viole compromissos internacionais de direitos humanos vigentes no Brasil.

5. A supralegalidade pode ser aplicada em matérias tributárias ou empresariais?
Em regra, a tese da supralegalidade aplica-se estritamente aos tratados de Direitos Humanos. Tratados de natureza tributária (como os que evitam dupla tributação) possuem status de lei ordinária, embora o Código Tributário Nacional (art. 98) confira a eles prevalência sobre a legislação interna, numa aplicação do princípio da especialidade, e não necessariamente de hierarquia supralegal.

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Este artigo teve a curadoria da equipe da Legale Educacional e foi escrito utilizando inteligência artificial a partir do seu conteúdo original disponível em https://www.conjur.com.br/2025-dez-29/jamais-seremos-modernos-em-defesa-de-uma-jurisprudencia-supralegal/.

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