A Problemática do Recebimento de Valores Indevidos por Agentes Públicos e a Tutela da Probidade Administrativa
O Conflito entre a Vedação ao Enriquecimento Sem Causa e a Boa-Fé do Servidor
No âmbito do Direito Administrativo e Constitucional, poucas questões geram tantos debates práticos e doutrinários quanto o recebimento de verbas remuneratórias indevidas por agentes públicos. A situação ocorre frequentemente por falhas operacionais da Administração, erros de cálculo ou má interpretação da legislação vigente. Quando o Estado paga a mais, surge imediatamente o conflito entre dois princípios basilares: a supremacia do interesse público, que exige a recomposição do erário, e a segurança jurídica, que protege a confiança legítima do administrado.
O ponto de partida para qualquer análise jurídica aprofundada sobre o tema reside no Código Civil, especificamente nos artigos 876 e 884, que tratam do pagamento indevido e do enriquecimento sem causa. A regra geral impõe que todo aquele que recebeu o que não lhe era devido fica obrigado a restituir. No entanto, quando transportamos essa lógica civilista para a relação estatutária entre o Estado e seus servidores, a questão ganha contornos de maior complexidade devido à natureza alimentar do salário ou subsídio.
A verba de natureza alimentar goza de proteção especial no ordenamento jurídico brasileiro. Presume-se que o servidor utilizou aqueles valores para sua subsistência e de sua família, o que tornaria a devolução, muitas vezes, um ônus excessivo ou impossível. É aqui que o conceito de boa-fé objetiva se torna o fiel da balança. Não se trata apenas de saber se o servidor sabia ou não do erro, mas se, dadas as circunstâncias, era exigível que ele tivesse conhecimento da ilicitude do pagamento.
Para os advogados que atuam na defesa de agentes públicos, compreender essas nuances é vital. A defesa não se resume a alegar que o dinheiro foi gasto; é necessário construir uma tese sólida baseada na legítima confiança de que o ato administrativo que concedeu o pagamento gozava de presunção de legitimidade e veracidade.
A Evolução Jurisprudencial: Do Erro de Interpretação ao Erro Operacional
A jurisprudência dos Tribunais Superiores, especialmente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), passou por uma evolução significativa na última década. Antigamente, havia uma distinção mais rígida, mas o Tema 531 do STJ consolidou o entendimento de que, quando o pagamento indevido decorre de erro administrativo (seja de cálculo ou operacional) e há boa-fé do servidor, não cabe a devolução dos valores.
Contudo, é preciso atenção redobrada às modificações recentes desse entendimento. O Tema 1009 do STJ trouxe uma modulação importante: os pagamentos indevidos decorrentes de erro administrativo perceptível pelo servidor devem ser restituídos. Isso altera drasticamente a estratégia de defesa. O foco deixa de ser apenas a origem do erro (se da Administração) e passa a ser a “perceptibilidade” do equívoco.
Se um desembargador, magistrado ou servidor de carreira recebe, por exemplo, um subsídio duplicado no mesmo mês, a tese da boa-fé se enfraquece consideravelmente. Diferente de um erro de cálculo percentual em uma gratificação complexa, o recebimento em dobro é um fato que, presumivelmente, o homem médio (e com mais razão, um profissional do Direito) deveria notar.
Nesse cenário, a atuação do especialista em Direito Administrativo é crucial para diferenciar o erro escusável do erro grosseiro. Aprofundar-se nesses detalhes técnicos é o que separa uma defesa genérica de uma estratégia vencedora. Para os profissionais que desejam dominar essas teses defensivas e a estrutura da Administração Pública, a Pós-Graduação Prática em Direito Administrativo oferece o arcabouço teórico e prático necessário para navegar por esses processos disciplinares e judiciais.
A Sombra da Improbidade Administrativa e a Má-Fé
Quando a devolução dos valores não é voluntária ou quando há indícios de que o agente público contribuiu para o erro ou silenciou dolosamente sobre ele, a esfera cível-administrativa da reposição ao erário pode escalar para a esfera da Improbidade Administrativa. A Lei 8.429/92, reformada pela Lei 14.230/21, exige a comprovação do dolo específico para a configuração do ato de improbidade.
No contexto de recebimentos indevidos, a acusação geralmente recai sobre o artigo 9º (enriquecimento ilícito) ou artigo 10 (prejuízo ao erário). A defesa técnica deve demonstrar a ausência de dolo. O simples fato de receber a mais não configura, automaticamente, improbidade. É necessário provar que o agente agiu com vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito.
A linha entre a mera irregularidade administrativa (que enseja apenas a devolução) e o ato de improbidade (que pode gerar perda do cargo e suspensão dos direitos políticos) é tênue. O silêncio do agente público diante de um crédito vultoso e injustificado em sua conta bancária pode ser interpretado pelo Ministério Público como uma conduta dolosa por omissão, visando a apropriação do dinheiro público.
Aspectos Contratuais da Defesa: Honorários e Complexidade da Causa
Paralelamente à questão do direito material administrativo, surge um aspecto prático da advocacia que merece destaque: a contratação de honorários para a defesa nesses casos complexos. Processos que envolvem a defesa de altas autoridades ou somas vultosas exigem uma expertise diferenciada e, consequentemente, uma estruturação de honorários condizente com o risco e a responsabilidade assumida.
No Direito Civil e na Deontologia Jurídica, vigora o princípio da autonomia da vontade na estipulação dos honorários contratuais, desde que respeitados os limites éticos de moderação e proporcionalidade. Em casos de alta complexidade, é comum que os contratos prevejam diferentes fatos geradores de honorários.
Por exemplo, a defesa em um Processo Administrativo Disciplinar (PAD) pode ser cobrada separadamente da defesa em uma eventual Ação Civil Pública por Improbidade Administrativa, mesmo que versem sobre os mesmos fatos. São instâncias independentes, com ritos, riscos e trabalhos distintos.
Não há ilicitude, a priori, em cobrar honorários para atuar na esfera administrativa e, posteriormente, cobrar novos honorários para atuar na esfera judicial ou em incidentes processuais específicos, desde que isso esteja claramente estipulado no contrato de prestação de serviços advocatícios. A clareza contratual é a maior proteção do advogado contra questionamentos futuros, inclusive por parte de órgãos de classe.
O advogado deve ser meticuloso ao redigir o contrato de honorários, prevendo cláusulas de êxito, pro labore inicial e valores específicos para cada fase ou desdobramento do caso. A duplicidade de cobrança só se torna problemática se houver bis in idem, ou seja, cobrar duas vezes pelo exato mesmo ato processual, o que não se confunde com cobrar por atuações em esferas ou momentos distintos decorrentes do mesmo fato jurídico.
O Dever de Autotutela da Administração e o Devido Processo Legal
A Administração Pública tem o poder-dever de rever seus próprios atos quando eivados de vícios, conforme enunciam as Súmulas 346 e 473 do Supremo Tribunal Federal (STF). Esse poder de autotutela permite que o órgão pagador, ao constatar o erro no pagamento, inicie os trâmites para a recuperação do valor.
Entretanto, a autotutela não é absoluta. Ela não autoriza o desconto imediato e unilateral na folha de pagamento do servidor sem o prévio contraditório e a ampla defesa. O Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento de que a reposição ao erário exige a instauração de um processo administrativo prévio, onde o servidor possa apresentar suas razões, contestar os cálculos e demonstrar sua boa-fé.
Muitas vezes, a Administração, na ânsia de recuperar o ativo, atropela o devido processo legal, procedendo a descontos automáticos. Essa conduta é passível de impetração de Mandado de Segurança. O advogado deve estar atento não apenas ao mérito (se deve ou não devolver), mas à forma como a cobrança está sendo realizada. Vícios formais no procedimento de cobrança podem levar à nulidade do ato administrativo, garantindo tempo precioso para a construção da defesa de mérito.
Além disso, é necessário verificar a ocorrência da decadência administrativa. A Lei 9.784/99 estabelece o prazo de cinco anos para que a Administração anule atos administrativos que gerem efeitos favoráveis aos destinatários. Se o pagamento indevido ocorreu de forma continuada por mais de cinco anos e houve boa-fé, consolida-se a situação jurídica pelo decurso do tempo, em homenagem à segurança jurídica.
Responsabilidade Civil e Penal do Agente Público
Para além da devolução dos valores e da improbidade administrativa, o recebimento indevido pode ter repercussões na esfera penal, tipificando crimes como peculato (art. 312 do Código Penal), caso haja apropriação de dinheiro público de que tem a posse em razão do cargo, ou peculato mediante erro de outrem (art. 313 do CP).
A análise do elemento subjetivo do tipo é fundamental. O erro do sistema ou do departamento de recursos humanos exclui o dolo de apropriação, a menos que o agente, percebendo o erro, decida conscientemente não comunicar a Administração e gastar os valores. A defesa criminal deve trabalhar em sintonia com a defesa administrativa, pois as provas produzidas em uma instância podem influenciar a outra, embora vigore a regra da independência das instâncias.
A responsabilidade do agente público é um microssistema jurídico que exige um olhar integrativo. O advogado não pode ser apenas civilista, penalista ou administrativista; ele deve compreender como o ato de receber um salário em duplicidade reverbera em todas essas esferas simultaneamente.
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Conclusão
A defesa de agentes públicos em casos de recebimento indevido de valores exige técnica apurada e conhecimento profundo da jurisprudência atualizada. A tese da boa-fé objetiva continua sendo o grande escudo contra a devolução, mas sua aplicação não é automática e depende da análise da perceptibilidade do erro. Paralelamente, a questão dos honorários advocatícios reforça a necessidade de contratualização clara e precisa, refletindo a complexidade e a multiplicidade de instâncias que tais casos envolvem. O advogado, portanto, atua como garantidor da legalidade e do devido processo, impedindo que a busca pela recomposição do erário atropele direitos fundamentais.
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Insights sobre o Tema
* **Perceptibilidade do Erro:** O critério atual do STJ (Tema 1009) foca na capacidade do servidor de perceber o erro. Valores muito acima da média ou pagamentos duplicados dificultam a alegação de boa-fé.
* **Independência das Instâncias:** A absolvição na esfera penal por falta de provas não impede a condenação na esfera cível-administrativa para ressarcimento, mas a negativa de autoria no penal vincula o administrativo.
* **Contratualização de Honorários:** A previsão de honorários distintos para fases distintas (administrativa e judicial) é lícita e recomendada para evitar disputas futuras e garantir a justa remuneração do advogado.
* **Decadência Administrativa:** O prazo de 5 anos é um forte argumento de defesa para pagamentos indevidos continuados, estabilizando as relações jurídicas.
* **Natureza Alimentar:** Embora proteja o salário, a natureza alimentar não é um salvo-conduto absoluto para o enriquecimento sem causa, especialmente diante de erros grosseiros.
Perguntas e Respostas
1. O servidor público é sempre obrigado a devolver valores recebidos a mais por erro da Administração?
Não. Conforme jurisprudência do STJ, se o erro for da Administração (operacional ou de cálculo), houver boa-fé do servidor e o erro não for grosseiro ou perceptível, a devolução pode ser dispensada em razão da natureza alimentar da verba e da segurança jurídica.
2. O que caracteriza a má-fé no recebimento de verbas indevidas?
A má-fé pode ser caracterizada quando o servidor tinha ciência do erro e silenciou, quando contribuiu para o equívoco, ou quando o erro era tão evidente (como um salário pago em dobro) que seria impossível alegar desconhecimento.
3. O advogado pode cobrar honorários para a defesa administrativa e depois cobrar novamente para a defesa judicial sobre o mesmo fato?
Sim, desde que haja previsão contratual clara. A defesa em Processo Administrativo Disciplinar (PAD) é um serviço distinto da defesa em uma Ação Judicial. São trabalhos diferentes, em instâncias diferentes, que justificam remunerações autônomas se assim pactuado.
4. A Administração pode descontar o valor indevido diretamente do salário do servidor?
Não de forma automática. É necessário instaurar um processo administrativo prévio, garantindo o contraditório e a ampla defesa ao servidor, para só então, se confirmada a irregularidade e a obrigação de devolver, proceder aos descontos (respeitando o limite percentual legal sobre a remuneração).
5. O recebimento indevido configura crime de peculato?
Depende do dolo. O peculato exige a apropriação intencional. Se o servidor recebeu por erro exclusivo do sistema e sem sua interferência, a conduta pode ser atípica penalmente, restando apenas a discussão civil e administrativa sobre a devolução. Porém, a apropriação consciente de valor que sabe não ser seu pode configurar ilícito penal.
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Este artigo teve a curadoria da equipe da Legale Educacional e foi escrito utilizando inteligência artificial a partir do seu conteúdo original disponível em https://www.conjur.com.br/2025-dez-18/defesa-de-desembargador-que-recebeu-salario-2-vezes-cobra-honorarios-2-vezes/.