O Novo Filtro de Relevância no Recurso Especial e os Desafios da Uniformização Jurisprudencial
A arquitetura do sistema recursal brasileiro atravessa um momento de transformação profunda, especialmente no que tange à atuação do Superior Tribunal de Justiça (STJ). A busca incessante por celeridade e racionalidade nas decisões judiciais culminou na implementação de mecanismos de filtragem mais rigorosos. O principal protagonista dessa mudança recente é a Emenda Constitucional nº 125/2022, que instituiu a arguição de relevância da questão federal infraconstitucional como requisito de admissibilidade para o Recurso Especial.
Este cenário impõe ao advogado uma nova postura técnica e estratégica. Não basta mais demonstrar a violação à lei federal ou a divergência jurisprudencial; é imperativo comprovar que a causa transcende os interesses subjetivos das partes. O desafio central que se desenha para a doutrina e para a advocacia prática reside em equilibrar a aplicação desse filtro sem provocar o engessamento da jurisprudência. A Corte, cuja função precípua é a uniformização da interpretação da lei federal, não pode se fechar em uma torre de marfim, sob pena de petrificar o Direito e dissociá-lo da realidade social em constante mutação.
A Arguição de Relevância e a EC 125/2022
A introdução da arguição de relevância no Recurso Especial aproxima, em certa medida, a sistemática do STJ àquela já consolidada no Supremo Tribunal Federal (STF) com a repercussão geral. A alteração do artigo 105 da Constituição Federal estabelece que o recorrente deve demonstrar a relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas no caso. O objetivo declarado é permitir que o Tribunal se concentre em teses jurídicas de maior impacto, reduzindo o volume de processos que tramitam na Corte apenas para resolver conflitos de índole puramente individual ou patrimonial de baixa expressão.
Entretanto, a aplicação prática desse conceito jurídico indeterminado — a “relevância” — exige cautela. O texto constitucional, em seu parágrafo 3º do artigo 105, elenca hipóteses de presunção de relevância, como as ações penais, as de improbidade administrativa e as causas cujo valor ultrapasse 500 salários mínimos. Para as demais situações, caberá ao Tribunal, por meio de seu órgão colegiado, admitir ou rejeitar o recurso. A admissão dependerá da manifestação de dois terços dos membros do órgão competente para o julgamento, o que eleva substancialmente a barreira de entrada.
Essa nova barreira exige um aprofundamento técnico por parte dos causídicos. A peça recursal deve ser construída com uma preliminar robusta e fundamentada, sob pena de não conhecimento imediato. É nesse contexto que o estudo contínuo se torna vital. Profissionais que buscam se destacar precisam dominar as nuances da Advocacia Cível e Recurso Especial, compreendendo não apenas a letra da lei, mas a mentalidade dos Ministros que aplicarão esses filtros.
O Risco da Jurisprudência Defensiva
Um dos maiores receios da comunidade jurídica é a exacerbação da chamada “jurisprudência defensiva”. Esse fenômeno ocorre quando os tribunais superiores criam entraves processuais excessivamente formalistas para evitar o julgamento do mérito dos recursos, como forma de gerir o incontrolável acervo processual. Se a arguição de relevância for utilizada meramente como uma ferramenta estatística de redução de estoque, corre-se o risco de negar jurisdição em casos onde a violação da lei federal é flagrante, mas a “relevância social ou econômica” não é imediatamente perceptível.
O engessamento da jurisprudência é uma consequência direta de uma filtragem mal calibrada. O Direito é um organismo vivo. A interpretação das normas deve evoluir conforme as mudanças tecnológicas, sociais e culturais. Se o STJ fechar as portas para casos que, à primeira vista, parecem “menores” ou “repetitivos”, mas que trazem em seu bojo novas nuances fáticas ou jurídicas, a Corte perderá a oportunidade de atualizar seus entendimentos. A uniformização do Direito não significa a repetição automática de precedentes antigos, mas sim a construção coerente e contínua de teses que respondam aos problemas contemporâneos.
Para evitar a estagnação, é fundamental que o critério de relevância inclua a “relevância jurídica” em sentido estrito. Ou seja, deve-se considerar relevante a discussão que revele uma lacuna na legislação, uma contradição entre turmas do próprio tribunal ou a necessidade de revisão de um entendimento consolidado (overruling) diante de novos paradigmas sociais. O advogado, portanto, atua como um catalisador dessa evolução, devendo ser capaz de demonstrar na petição que aquele caso específico possui o potencial de refinar o ordenamento jurídico.
Presunção de Relevância e suas Nuances
A EC 125/2022 trouxe hipóteses objetivas onde a relevância é presumida. São elas: ações penais, ações de improbidade administrativa, ações cujo valor da causa ultrapasse 500 salários mínimos, ações que possam gerar inelegibilidade e situações em que o acórdão recorrido contrarie jurisprudência dominante do STJ. Essas balizas oferecem um porto seguro para o recorrente, mas também geram debates interpretativos.
No caso das ações penais, a presunção de relevância reflete a importância do bem jurídico tutelado: a liberdade. Contudo, mesmo nessas hipóteses, o conhecimento do recurso não é automático se esbarrar em outros óbices sumulares, como a Súmula 7 do STJ, que veda o reexame de provas. A presunção de relevância supera o filtro da importância da matéria, mas não revoga os pressupostos intrínsecos e extrínsecos tradicionais do recurso.
Já a fixação do valor de alçada em 500 salários mínimos para presunção de relevância econômica levanta questões sobre o acesso à justiça. Causas de menor valor financeiro podem esconder teses jurídicas de altíssima complexidade e impacto social difuso. Nestes casos, o ônus argumentativo do advogado é dobrado: ele deve convencer a Corte de que, apesar do valor monetário reduzido, a questão jurídica subjacente possui densidade suficiente para justificar a intervenção do Tribunal da Cidadania.
A Função Nomofilácica do STJ
A essência do Superior Tribunal de Justiça é a sua função nomofilácica, isto é, a proteção da integridade e da uniformidade do direito federal. Diferentemente do STF, que guarda a Constituição, o STJ deve garantir que uma lei federal não tenha interpretações díspares no Rio Grande do Sul e no Amazonas. O filtro da relevância deve servir a esse propósito, e não o contrário.
Se o filtro impedir que divergências interpretativas cheguem à Corte, a segurança jurídica estará comprometida. A estabilidade das relações sociais depende da previsibilidade das decisões judiciais. Quando o STJ deixa de julgar uma tese importante por barreiras processuais, ele permite que os Tribunais de Justiça estaduais e os Tribunais Regionais Federais decidam de forma heterogênea, pulverizando a unidade do sistema jurídico nacional.
O profissional do Direito deve estar atento à distinção entre a função de julgar o caso concreto e a função de formar precedentes. No sistema de precedentes brasileiro, fortalecido pelo Código de Processo Civil de 2015, o recurso excepcional não visa apenas resolver a lide das partes, mas servir de paradigma para milhares de outros processos. É a transição de um modelo focado na justiça individual para um modelo de justiça sistêmica.
Técnica de Redação da Preliminar de Relevância
Na prática forense, a redação do tópico da relevância na petição de Recurso Especial exige precisão cirúrgica. Não se trata de uma mera formalidade ou de repetir que a justiça deve ser feita. O advogado deve estruturar argumentos que toquem em dimensões políticas, jurídicas, sociais ou econômicas da controvérsia.
Sob o aspecto jurídico, deve-se apontar a existência de dissídio notório entre tribunais inferiores ou a afronta direta a um dispositivo de lei que necessita de pacificação. Sob o aspecto social, é válido demonstrar como a decisão afetará grupos vulneráveis ou relações de consumo em larga escala. No viés econômico, o impacto no mercado, na livre concorrência ou no erário deve ser evidenciado com dados concretos, se possível.
A generalidade é a inimiga da admissibilidade. Alegações vagas de que “o tema é importante” serão prontamente rechaçadas. O advogado deve conectar o fato concreto à tese abstrata, demonstrando o efeito multiplicador da decisão que se espera do STJ. É um exercício de argumentação que vai além do silogismo tradicional, exigindo uma visão macroscópica do Direito.
O Papel da Tecnologia e da Inteligência Artificial
Não se pode ignorar o impacto da tecnologia na gestão desses filtros. O STJ tem investido pesadamente em inteligência artificial para auxiliar na triagem dos recursos. Algoritmos agrupam processos por similaridade de temas e identificam óbices processuais padrão. Isso traz eficiência, mas também impõe riscos. A “algoritmização” do juízo de admissibilidade pode levar a uma padronização excessiva, onde nuances distintivas (distinguishing) de um caso específico passam despercebidas pela máquina.
O advogado moderno precisa escrever não apenas para o juiz humano, mas de uma forma que seja “legível” e corretamente categorizada pelos sistemas de automação do Tribunal. A clareza na exposição dos fatos, a identificação precisa dos dispositivos legais violados e a estruturação lógica da peça são fundamentais para que o recurso supere a barreira inicial da triagem automatizada e chegue à análise do relator.
Conclusão
A aplicação do filtro de relevância no Recurso Especial representa um marco na evolução do processo civil brasileiro. Se bem utilizado, permitirá que o STJ cumpra sua missão constitucional com maior racionalidade, focando naquilo que realmente importa para a sociedade e para o ordenamento jurídico. Contudo, o risco de engessamento da jurisprudência é real e deve ser combatido diuturnamente pela advocacia combativa e qualificada.
Caberá aos advogados o papel de “provocadores” do sistema, forçando a Corte a enfrentar teses novas e a revisitar entendimentos superados. A admissibilidade recursal deixa de ser um exame meramente técnico-formal para se tornar um debate sobre a própria função política e social do Poder Judiciário. A sobrevivência e o sucesso na instância especial dependerão, cada vez mais, da capacidade do profissional de articular o direito individual com o interesse público na uniformização da lei.
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Insights sobre o Tema
A transformação do Recurso Especial com a Arguição de Relevância altera o eixo de atuação do advogado nos tribunais superiores. O foco migra da demonstração exclusiva da injustiça no caso concreto para a comprovação da transcendência da matéria. Isso exige uma advocacia mais estratégica e menos “artesanal” no sentido de repetição de modelos. O risco de “jurisprudência defensiva” obriga o profissional a antecipar os argumentos de bloqueio do Tribunal, construindo a peça recursal como uma ferramenta de convencimento sobre a necessidade sistêmica do julgamento, e não apenas sobre o direito individual da parte. A dialética processual se sofistica, exigindo domínio não só da lei, mas da política judiciária.
Perguntas e Respostas Frequentes
1. O que é a Arguição de Relevância no Recurso Especial?
É um requisito de admissibilidade introduzido pela Emenda Constitucional nº 125/2022, que obriga o recorrente a demonstrar que a questão federal discutida no Recurso Especial possui relevância jurídica, política, social ou econômica, transcendendo os interesses subjetivos das partes envolvidas no processo.
2. Quais são as hipóteses de relevância presumida previstas na Constituição?
A Constituição Federal, no art. 105, § 3º, estabelece presunção de relevância para: ações penais, ações de improbidade administrativa, ações cujo valor da causa ultrapasse 500 salários mínimos, ações que possam gerar inelegibilidade e casos em que o acórdão recorrido contrarie jurisprudência dominante do STJ.
3. Como a falta de demonstração da relevância afeta o recurso?
Se o recorrente não demonstrar a relevância ou se o Tribunal entender que ela não existe, o Recurso Especial não será conhecido (não será admitido). A decisão de inadmissibilidade pela ausência de relevância depende da manifestação de 2/3 dos membros do órgão competente para o julgamento.
4. A Arguição de Relevância substitui os outros requisitos de admissibilidade, como o prequestionamento?
Não. A relevância é um requisito cumulativo. O Recurso Especial continua exigindo o cumprimento de todos os outros pressupostos recursais, como o prequestionamento da matéria (Súmulas 282 e 356 do STF e 211 do STJ), a tempestividade, o preparo e a não incidência de vedação ao reexame de provas (Súmula 7 do STJ).
5. O que significa o risco de “engessamento” da jurisprudência com o novo filtro?
Refere-se ao perigo de o STJ utilizar o filtro de relevância de forma excessivamente restritiva para reduzir o número de processos, deixando de julgar casos que trazem novas teses ou situações fáticas que demandariam uma atualização da interpretação da lei. Isso impediria a evolução natural do Direito e a correção de rumos na jurisprudência.
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Acesse a lei relacionada em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm#art105
Este artigo teve a curadoria da equipe da Legale Educacional e foi escrito utilizando inteligência artificial a partir do seu conteúdo original disponível em https://www.conjur.com.br/2025-dez-17/sumula-no-83-do-stj-e-overruling-como-aplicar-o-filtro-recursal-sem-engessar-a-jurisprudencia/.