O Enquadramento Jurídico de Operações de Vendas por Telefone e a Aplicação do Anexo II da NR-17
A Evolução das Relações de Trabalho e a Tecnologia
O Direito do Trabalho é uma ciência dinâmica que precisa acompanhar constantemente a evolução dos meios de produção e das ferramentas tecnológicas utilizadas no ambiente corporativo. Uma das questões mais debatidas nos tribunais trabalhistas brasileiros diz respeito à distinção, muitas vezes tênue, entre o cargo de vendedor tradicional e o de operador de telemarketing ou teleatendimento. Essa diferenciação não é meramente terminológica, pois carrega consigo profundas implicações jurídicas, econômicas e sociais, especialmente no que tange à jornada de trabalho e à saúde ocupacional do empregado.
Historicamente, a figura do vendedor estava associada ao trabalho externo, às visitas presenciais e à interação direta face a face com o cliente. No entanto, a modernização dos processos comerciais trouxe o telefone e, posteriormente, os sistemas informatizados de VoIP e CRM, para o centro da atividade de vendas. Hoje, é comum encontrar profissionais contratados sob a nomenclatura de “vendedores” que, na prática, passam a integralidade de sua jornada de trabalho sentados, utilizando headsets e terminais de computador para realizar a prospecção e o fechamento de negócios.
O cerne da discussão jurídica reside na aplicação analógica da legislação protetiva destinada aos telefonistas e operadores de telemarketing a esses vendedores internos. A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em seu artigo 227, prevê uma jornada especial reduzida de seis horas para telefonistas, visando proteger o trabalhador da fadiga mental e física inerente à atividade. A jurisprudência, por sua vez, tem estendido esse entendimento para abranger aqueles que, embora não sejam telefonistas strictu sensu, exercem atividades preponderantes de telefonia.
A compreensão profunda desses institutos é vital para a advocacia preventiva e contenciosa. Para profissionais que desejam se especializar nestas nuances, a Pós-Graduação em Direito do Trabalho e Processo oferece o embasamento teórico necessário para distinguir as situações fáticas e aplicar corretamente o direito material.
A Preponderância da Atividade e o Princípio da Primazia da Realidade
No Direito do Trabalho, vige o princípio da primazia da realidade, segundo o qual os fatos observados na execução do contrato de trabalho prevalecem sobre as formas ou nomes atribuídos pelas partes. Isso significa que a nomenclatura do cargo anotada na Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS) é menos relevante do que as tarefas efetivamente desempenhadas pelo trabalhador no dia a dia. Se um empregado é contratado como “Executivo de Vendas”, mas sua rotina consiste ininterruptamente em realizar chamadas telefônicas ou atender ligações com o objetivo de vender produtos, a realidade fática aponta para uma atividade de teleatendimento.
A caracterização do trabalho de telemarketing não exige que o empregado apenas receba ligações (receptivo) ou siga um script rígido de atendimento. A atividade ativa (ativo), onde o trabalhador toma a iniciativa de ligar para oferecer produtos, também se enquadra nas previsões de proteção à saúde do trabalhador, desde que o telefone seja a ferramenta exclusiva ou preponderante de trabalho. O Tribunal Superior do Trabalho (TST) consolidou o entendimento de que a jornada reduzida de seis horas diárias e trinta e seis semanais é aplicável aos empregados que exercem a função de operador de telemarketing, independentemente do rótulo funcional.
A distinção crucial muitas vezes reside na exclusividade do uso do telefone. Um vendedor que realiza visitas, participa de reuniões presenciais e utiliza o telefone apenas como uma ferramenta auxiliar para agendar compromissos não se equipara ao operador de telemarketing. Por outro lado, aquele que está confinado à mesa de trabalho, com uso contínuo de fones de ouvido e microfone, realizando a venda inteiramente à distância, está exposto aos mesmos riscos ergonômicos e psíquicos que justificam a norma protetiva.
A Aplicação do Anexo II da NR-17
A Norma Regulamentadora nº 17 (NR-17) do Ministério do Trabalho e Emprego, que trata da ergonomia, possui um anexo específico (Anexo II) dedicado ao trabalho em teleatendimento/telemarketing. Esta norma estabelece parâmetros rígidos para a organização do trabalho, mobiliário, equipamentos e, crucialmente, o tempo de trabalho efetivo. O objetivo da norma é prevenir doenças ocupacionais como a LER (Lesão por Esforço Repetitivo), DORT (Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao Trabalho) e transtornos mentais decorrentes do estresse e da pressão por metas.
O Anexo II define o trabalho de teleatendimento como aquele cuja comunicação com interlocutores clientes e usuários é realizada à distância por intermédio da voz e/ou mensagens eletrônicas, com a utilização simultânea de equipamentos de audição/escuta e fala telefônica e sistemas informatizados ou manuais de processamento de dados. A norma é clara ao determinar que o tempo de trabalho em efetiva atividade de teleatendimento/telemarketing é de, no máximo, 06 (seis) horas diárias, nelas incluídas as pausas, sem prejuízo da remuneração.
Quando um “vendedor” opera nas condições descritas pela NR-17, a ausência de aplicação das pausas obrigatórias e a imposição de uma jornada de oito horas configuram não apenas uma irregularidade administrativa, mas um ilícito trabalhista que gera passivo para a empresa. A equiparação da função de vendas por telefone ao teleatendimento atrai a incidência de todas as proteções deste anexo, incluindo as regras sobre mobiliário ergonômico e a proibição de assédio moral por meio de monitoramento excessivo.
Reflexos Financeiros e o Pagamento de Horas Extras
A consequência prática mais imediata do reconhecimento da equiparação entre vendas por telefone e teleatendimento é a alteração da base de cálculo da jornada de trabalho. Se o empregado foi contratado para trabalhar oito horas diárias, mas a justiça reconhece que sua atividade se enquadra na jornada especial de seis horas, todas as horas trabalhadas além da sexta hora diária devem ser remuneradas como horas extras.
Este recálculo pode representar um impacto financeiro significativo para as empresas e um direito substancial para o trabalhador. Além do pagamento das horas excedentes com o respectivo adicional (mínimo de 50%), há reflexos em todas as verbas trabalhistas, como descanso semanal remunerado (DSR), férias acrescidas do terço constitucional, décimo terceiro salário, aviso prévio e Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS).
A defesa técnica nesses casos exige uma análise minuciosa da rotina de trabalho. O empregador que deseja afastar a equiparação deve demonstrar que a atividade de telefonia não era preponderante ou ininterrupta, comprovando a existência de outras tarefas que quebravam a rotina de atendimento, como a elaboração de propostas complexas fora do sistema de telefonia, reuniões presenciais ou a necessidade de deslocamento físico. Por outro lado, o advogado do reclamante deve focar na prova da penosidade da função e na submissão às condições descritas na NR-17.
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A Questão das Comissões e a Natureza Salarial
Outro ponto de interseção relevante é a remuneração variável. Vendedores, tradicionalmente, recebem comissões sobre as vendas. Operadores de telemarketing, muitas vezes, recebem prêmios por metas. Na prática de vendas por telefone, a estrutura remuneratória tende a ser híbrida. A reclassificação da jornada não deve, em tese, prejudicar a remuneração global do trabalhador, dada a garantia constitucional da irredutibilidade salarial.
Entretanto, surge a discussão sobre o divisor aplicável para o cálculo do salário-hora. Para uma jornada de 44 horas semanais, utiliza-se o divisor 220. Para a jornada de 36 horas semanais (comum ao telemarketing), o divisor é 180. A alteração do divisor eleva o valor do salário-hora, impactando diretamente o cálculo das horas extras devidas. Isso torna a condenação ainda mais onerosa para o empregador que não observou a jornada especial desde o início do contrato.
A Saúde do Trabalhador como Bem Jurídico Tutelado
A razão de ser da jornada reduzida para atividades de telefonia e vendas por telefone não é um privilégio da categoria, mas uma medida de saúde pública e segurança do trabalho. A atividade exige concentração constante, a audição fica sob estresse contínuo devido ao uso de headsets, e a voz é utilizada como instrumento ininterrupto de trabalho, muitas vezes em ambientes ruidosos ou sob forte pressão de supervisores para o cumprimento de metas agressivas.
A fadiga gerada por esse tipo de trabalho é cumulativa. Estudos que embasaram a criação do Anexo II da NR-17 demonstraram que após seis horas de atividade intensa de teleatendimento, a produtividade cai drasticamente e o risco de adoecimento físico e mental aumenta exponencialmente. Portanto, quando o judiciário decide equiparar vendas por telefone a teleatendimento, ele está aplicando o princípio da proteção, visando preservar a integridade psicofísica do obreiro.
Não se trata apenas de “falar ao telefone”, mas de realizar um trabalho repetitivo, com pouca autonomia, ritmo ditado por máquinas ou filas de atendimento, e sob monitoramento eletrônico. Essas são as características que definem a penosidade da função e atraem a tutela legal específica. O advogado deve estar atento para requerer, além das horas extras, eventuais indenizações por danos morais caso as condições de trabalho tenham violado a dignidade do trabalhador ou causado doenças ocupacionais.
O Papel da Tecnologia na Descaracterização ou Caracterização
A tecnologia pode servir tanto para comprovar a tese do empregado quanto a do empregador. Relatórios de login e logout (log de sistema), tempo médio de atendimento (TMA) e gravações de chamadas são meios de prova robustos. Se os relatórios demonstram que o trabalhador permanecia “logado” no sistema de telefonia por oito horas diárias, a tese da equiparação ganha força probatória irrefutável.
Por outro lado, a utilização de ferramentas de comunicação assíncrona, como WhatsApp ou e-mail, introduziu novas nuances. Se o vendedor passa a maior parte do tempo trocando mensagens de texto e e-mails, sem o uso contínuo de voz e fones de ouvido, a aplicação analógica do artigo 227 da CLT e da NR-17 pode ser questionada, uma vez que o desgaste auditivo e vocal não está presente na mesma intensidade. Contudo, o desgaste visual e postural e a repetitividade de movimentos permanecem, exigindo uma análise caso a caso pelo magistrado.
A tendência jurisprudencial é focar na “atividade preponderante”. Se a venda é concretizada essencialmente através do contato remoto em tempo real, com o trabalhador preso à estação de trabalho, a proteção legal tende a ser reconhecida. A evolução para o “home office” ou teletrabalho também não afasta, por si só, a aplicação dessas normas, desde que o controle de jornada e a natureza da atividade permaneçam inalterados.
Conclusão
A equiparação de vendedores que atuam via telefone aos operadores de telemarketing é um tema consolidado na jurisprudência, mas que ainda gera muitas dúvidas e passivos trabalhistas devido à resistência das empresas em adaptar suas estruturas ou à tentativa de mascarar a função para obter jornadas mais longas. O critério definidor é a realidade da execução contratual: a preponderância do uso do telefone e de sistemas informatizados, a restrição ao posto de trabalho e a repetitividade da tarefa.
Para o profissional do Direito, identificar esses elementos é crucial para o sucesso da demanda. Seja na defesa da empresa, orientando sobre a correta classificação de cargos e prevenção de riscos, seja na defesa do trabalhador, buscando a reparação pelas horas trabalhadas em excesso e a proteção à saúde. O domínio sobre a NR-17, o artigo 227 da CLT e a jurisprudência atualizada do TST é a chave para uma atuação jurídica de excelência neste nicho.
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Insights sobre o Tema
A análise aprofundada da equiparação entre vendas por telefone e teleatendimento revela pontos cruciais para a prática jurídica moderna. Primeiramente, destaca-se a ineficácia de “blindagens contratuais” que não correspondem à realidade fática; contratos bem redigidos não salvam empresas que impõem rotinas de telemarketing a vendedores formais. Em segundo lugar, observa-se que a saúde do trabalhador é o vetor interpretativo central; as normas de jornada reduzida não são benefícios financeiros, mas normas de higiene e segurança, o que as torna normas de ordem pública inafastáveis por negociação individual. Por fim, a tecnologia atua como uma faca de dois gumes: ao mesmo tempo que permite o controle total da produtividade (servindo de prova), cria o ambiente de pressão e repetitividade que fundamenta a condenação judicial.
Perguntas e Respostas
1. Qual é o critério principal para diferenciar um vendedor de um operador de telemarketing para fins legais?
O critério principal é a primazia da realidade, observando a preponderância da atividade exercida. Se o profissional utiliza o telefone e sistemas informatizados de forma exclusiva ou preponderante, com uso de headset e restrito ao posto de trabalho para realizar vendas, ele se equipara ao operador de telemarketing, independentemente do nome do cargo na carteira de trabalho.
2. A qual jornada de trabalho tem direito o vendedor que atua exclusivamente por telefone?
Aplicando-se analogicamente o artigo 227 da CLT e o Anexo II da NR-17, este trabalhador tem direito a uma jornada de 6 horas diárias e 36 horas semanais. Qualquer hora trabalhada acima desse limite deve ser paga como hora extra.
3. O fato de o vendedor receber comissões impede o reconhecimento da jornada reduzida?
Não. A forma de remuneração (salário fixo, misto ou comissões) não define a jornada de trabalho nem a natureza da atividade para fins de saúde e segurança. Um vendedor comissionado que trabalha nos moldes de teleatendimento tem direito à jornada de 6 horas e às pausas da NR-17.
4. O que é o Anexo II da NR-17 e por que ele é importante neste contexto?
O Anexo II da Norma Regulamentadora 17 estabelece parâmetros mínimos para o trabalho em teleatendimento/telemarketing, visando a prevenção de doenças. Ele é importante porque define legalmente as condições de trabalho (mobiliário, equipamentos, tempo de exposição) que, quando presentes na rotina de um vendedor, justificam a equiparação e a aplicação da jornada reduzida.
5. A empresa pode alegar que o trabalho era “híbrido” para evitar o pagamento de horas extras?
A empresa pode alegar, mas terá o ônus de provar que a atividade não era preponderantemente de telefonia. Se ficar comprovado que, apesar de eventuais outras tarefas, a maior parte do tempo o empregado estava “preso” ao telefone/headset realizando vendas, a equiparação tende a ser mantida pelos tribunais.
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Acesse a lei relacionada em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452compilado.htm#art227
Este artigo teve a curadoria da equipe da Legale Educacional e foi escrito utilizando inteligência artificial a partir do seu conteúdo original disponível em https://www.conjur.com.br/2025-dez-17/vendas-por-telefone-se-equiparam-a-telemarketing-decide-trt-2/.