O Ordenamento Jurídico e o Combate à Violência Doméstica: Uma Análise Crítica da Prática Forense
A violência doméstica e familiar contra a mulher é, inegavelmente, uma das violações de direitos humanos mais complexas da atualidade. Contudo, para o operador do Direito, a mera compreensão sociológica não basta. O tratamento jurídico desse fenômeno, que migrou da esfera privada para o centro da tutela penal estatal, criou um microssistema jurídico repleto de antinomias e desafios processuais. A Constituição Federal de 1988 e a subsequente Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) retiraram essas infrações da competência dos Juizados Especiais Criminais (Lei 9.099/95), impedindo institutos despenalizadores como a transação penal.
Essa “evolução legislativa”, embora necessária para combater a impunidade, gerou um efeito colateral prático: o inchaço do Judiciário com processos que exigem uma hermenêutica específica. Para o advogado, compreender a violência de gênero exige dominar não apenas a letra da lei, mas as zonas cinzentas da sua aplicação, equilibrando a proteção da vítima com as garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa, muitas vezes tensionadas pela aplicação automática de severidade penal.
A Tipificação e os Desafios Probatórios da Violência Psicológica
A Lei Maria da Penha estipula cinco formas de violência (física, psicológica, sexual, patrimonial e moral), mas é na violência psicológica que reside um dos maiores gargalos da defesa e da acusação. Com a inclusão do artigo 147-B no Código Penal pela Lei 14.188/2021, criminalizou-se a causação de “dano emocional”.
Aqui surge o ponto crítico para a prática forense: a materialidade do delito. Diferente da lesão corporal, comprovada por exame de corpo de delito, o dano emocional é subjetivo e o tipo penal é aberto.
- Para a Acusação: A narrativa da vítima, por si só, pode ser insuficiente para sustentar uma condenação robusta neste tipo específico. A instrução exige, idealmente, laudos periciais psicológicos e relatórios multidisciplinares.
- Para a Defesa: A estratégia deve focar na ausência de nexo causal técnico entre a conduta e o suposto dano, muitas vezes exigindo a atuação de assistentes técnicos para questionar a metodologia dos laudos oficiais.
A violência patrimonial também exige atenção redobrada, pois é frequentemente utilizada como instrumento de controle. A correta capitulação jurídica é vital, não apenas para a denúncia, mas para fundamentar pedidos de restituição de bens que muitas vezes ficam retidos liminarmente.
Medidas Protetivas de Urgência: O Limbo Recursal
As Medidas Protetivas de Urgência (MPU) são o coração da lei, visando cessar a ameaça de forma imediata. O juiz deve decidir em 48 horas, muitas vezes *inaudita altera pars* (sem ouvir a outra parte). Embora o texto legal afirme sua natureza autônoma, a prática revela um verdadeiro limbo recursal que confunde muitos profissionais.
Quando uma medida protetiva é deferida (ou indeferida), qual é o recurso cabível? A jurisprudência oscila e o advogado deve estar atento à fungibilidade recursal:
- Se a natureza for considerada penal (como a proibição de contato), muitos tribunais admitem o Recurso em Sentido Estrito (RESE).
- Se a natureza for cível (como alimentos provisórios ou afastamento do lar), o Agravo de Instrumento pode ser o caminho adequado.
- Em alguns casos, utiliza-se a Apelação subsidiária ou até mesmo o Mandado de Segurança.
O descumprimento gera o crime do art. 24-A, admitindo prisão em flagrante. Para entender profundamente como manejar esses pedidos e os recursos cabíveis, evitando o não conhecimento por erro grosseiro, recomenda-se o estudo focado na Maratona Aspecto Geral da Lei 11.340/2006 Requerimento de Medida Protetiva pela Lei 11.340/2006.
A Palavra da Vítima e o Standard Probatório
A jurisprudência consolidada dita que a palavra da vítima tem “especial relevância”. No entanto, o advogado diligente deve ler essa premissa com cautela crítica. O Superior Tribunal de Justiça tem refinado o standard probatório: a palavra da vítima é o ponto de partida, não o de chegada.
Em um cenário de divórcios litigiosos, não é incomum o uso tático da Lei Maria da Penha, fenômeno que alguns doutrinadores chamam de Lawfare de Gênero. Acusações infundadas podem ser usadas para afastar o genitor do lar ou dos filhos. Portanto, a defesa técnica deve:
- Explorar contradições nos depoimentos;
- Exigir elementos periféricos de prova (mensagens, testemunhas, registros de GPS, histórico médico);
- Demonstrar, quando houver, o dolo de instrumentalização do processo penal para fins cíveis.
Intersecções com o Direito de Família: A “Corrida Armamentista”
A Lei 14.713/2023 alterou o Código Civil para vedar a guarda compartilhada quando houver “probabilidade de risco” de violência doméstica. Essa alteração legislativa, embora protecionista, criou uma nova dinâmica processual: o registro do Boletim de Ocorrência tornou-se, em muitos casos, uma peça estratégica na disputa pela guarda unilateral.
O advogado de família precisa atuar em sintonia fina com a defesa criminal. A “probabilidade de risco” é um conceito jurídico indeterminado que o juiz preencherá no caso concreto. A competência híbrida (art. 14-A) permite que o Juizado de Violência Doméstica decida sobre o divórcio e guarda, mas não sobre a partilha de bens. Isso exige uma gestão processual complexa para evitar decisões conflitantes entre varas cíveis e criminais.
Para dominar a estratégia necessária nessas situações limites, onde o Direito Penal invade a esfera familiar, conheça a Maratona Lei Maria da Penha e o Direito de Família.
Questões Trabalhistas e o Protocolo de Gênero
O artigo 9º, § 2º, da Lei Maria da Penha prevê a manutenção do vínculo trabalhista por até seis meses. Contudo, a lei é silente sobre quem arca com o ônus financeiro: é uma interrupção (empresa paga) ou suspensão (sem salário) do contrato?
- A corrente majoritária tende a considerar como suspensão, encaminhando a vítima ao INSS para recebimento de auxílio por incapacidade (equiparado a auxílio-doença), mas há decisões divergentes impondo o ônus ao empregador.
Por fim, o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do CNJ é obrigatório. Para a defesa, o desafio é garantir que a aplicação do protocolo sirva para contextualizar a prova e evitar revitimização, sem que isso signifique o abandono da presunção de inocência ou do in dubio pro reo. O julgamento com perspectiva de gênero não deve ser um atalho para a condenação sem provas, mas sim uma ferramenta de análise equânime.
Insights sobre o Tema
A prática na Lei Maria da Penha não aceita amadorismo. O sistema é rígido, as consequências são severas (prisão, perda de guarda, estigma social) e a prova é, por natureza, escassa e baseada em testemunhos. O sucesso processual depende da capacidade do advogado de navegar entre a proteção necessária à mulher e o combate ao punitivismo cego que ignora garantias processuais. A interdisciplinaridade com a psicologia forense e a estratégia processual afiada no manejo de recursos são os diferenciais do profissional de excelência.
Perguntas e Respostas
1. Qual o recurso cabível contra a decisão que defere ou indefere Medidas Protetivas?
Não há consenso absoluto. Dependendo do tribunal e da natureza da medida (cível ou criminal), pode-se utilizar o Recurso em Sentido Estrito (RESE), o Agravo de Instrumento ou, subsidiariamente, a Apelação. O advogado deve verificar o regimento interno e a jurisprudência local, ou valer-se do princípio da fungibilidade.
2. A reconciliação do casal extingue o processo criminal?
Depende do crime. Na lesão corporal (maioria dos casos), a ação é pública incondicionada (Súmula 542 STJ), ou seja, o processo continua mesmo com a reconciliação. Em crimes de ação condicionada (como ameaça), a retratação só é possível antes do recebimento da denúncia, em audiência específica perante o juiz (art. 16).
3. Basta a palavra da vítima para condenar por violência psicológica (147-B)?
Embora a palavra da vítima tenha peso, a condenação por violência psicológica (art. 147-B) é tecnicamente frágil sem laudo pericial ou psicológico que ateste o “dano emocional” exigido pelo tipo penal. A defesa deve explorar a ausência de materialidade técnica.
4. A nova lei de guarda (14.713/23) impede automaticamente a guarda compartilhada com um simples B.O.?
A letra da lei fala em “elementos que evidenciem a probabilidade de risco”. Na prática, muitos juízes aplicam a restrição liminarmente com base apenas no B.O., o que exige da defesa uma atuação rápida para demonstrar a inexistência de risco real ou a instrumentalização da lei para alienação parental.
5. Quem paga o salário da vítima afastada do trabalho pelo art. 9º?
A lei não é clara. O entendimento prevalecente é de que se trata de uma suspensão do contrato de trabalho, cabendo ao INSS o pagamento de benefício (auxílio por incapacidade temporária), mediante decisão judicial que determine o afastamento. Contudo, o advogado deve estar preparado para litígios onde a empresa se recusa a manter o vínculo ou o INSS nega o benefício.
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Acesse a lei relacionada em Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha)
Este artigo teve a curadoria da equipe da Legale Educacional e foi escrito utilizando inteligência artificial a partir do seu conteúdo original disponível em https://www.conjur.com.br/2025-dez-07/acoes-sobre-violencia-contra-a-mulher-devem-bater-recorde-em-2025/.