Plantão Legale

Carregando avisos...

Venire contra factum proprium

Venire contra factum proprium é uma expressão de origem latina utilizada no âmbito do Direito, sobretudo no Direito Civil, cuja aplicação tem por finalidade assegurar a boa-fé e a confiança legítima nas relações jurídicas. Em tradução livre, a locução significa vir contra o fato próprio, ou seja, agir em contradição com um comportamento anterior que tenha gerado no outro sujeito da relação jurídica uma expectativa legítima de continuidade ou coerência.

Esse princípio se relaciona de forma direta com o princípio da boa-fé objetiva, que é um dos pilares das relações contratuais e negociais modernas. A boa-fé objetiva impõe aos participantes de uma relação jurídica o dever de agir com lealdade, honestidade e coerência na condução dos seus atos e declarações. Quando uma das partes adota determinada conduta reiterada, ou emite declarações claras e inequívocas, e essa conduta ou declaração induz a outra parte a acreditar em determinado estado de coisas, é vedado que a primeira, posteriormente, tenha um comportamento contraditório que prejudique a outra, especialmente se esta confiou na legitimidade do comportamento anterior.

O venire contra factum proprium é, portanto, uma manifestação do princípio da proibição do comportamento contraditório. Ele visa evitar o exercício abusivo de um direito que, se levado a efeito, contribuiria para a frustração da legítima expectativa gerada no sujeito que confiou na conduta anterior da outra parte.

Este instituto jurídico é frequentemente utilizado no campo do Direito Contratual, mas pode ser aplicado em diferentes ramos do Direito Privado e até do Direito Público. Por exemplo, se uma empresa adota uma política reiterada de tolerância ao atraso de pagamento por parte de um cliente, sem aplicar multas ou penalidades contratuais, e posteriormente, sem aviso prévio ou mudança de política, resolve rescindir o contrato com base em atraso semelhante, poderá ser arguído o venire contra factum proprium. Neste caso, entender-se-ia que a empresa agiu em contradição com sua conduta anterior e violou as expectativas legítimas do contratante.

Da mesma forma, no campo do Direito Administrativo, podem-se encontrar situações onde o poder público pratica determinados atos ou adota determinadas posições de forma reiterada, criando para o administrado uma expectativa de estabilidade na relação. Uma reversão brusca e sem justificativa dessas posições pode configurar uma violação ao princípio em questão.

Importante destacar que não se trata apenas de uma questão de moralidade, mas de um verdadeiro limite ao exercício de direitos subjetivos. O venire contra factum proprium impede que se utilize um direito, mesmo que previsto legal ou contratualmente, de forma contradictória com comportamentos anteriores que geraram confiança ou induziram outra parte a modificar sua posição ou tomar decisões com base nessa conduta.

Para que esse princípio seja aplicável, entretanto, a jurisprudência e a doutrina entendem que é necessário o preenchimento de certos requisitos. Em primeiro lugar, deve haver um comportamento anterior claro e inequívoco praticado por uma das partes. Em segundo lugar, esse comportamento deve ter gerado na outra parte uma expectativa legítima de que tal conduta será mantida. Em terceiro lugar, é preciso que a mudança de conduta ou a adoção da postura contraditória tenha causado um prejuízo ou uma desvantagem à parte que confiou na conduta anterior.

O venire contra factum proprium apresenta uma função estabilizadora das relações jurídicas. Age como um instrumento de proteção à confiança e uma barreira contra o uso abusivo de prerrogativas legais ou convencionais. Em última análise, busca garantir a segurança jurídica, princípio fundamental do Estado de Direito, uma vez que impede que condutas incoerentes e inesperadas prejudiquem a previsibilidade e a consistência nas interações jurídicas.

Além disso, esse princípio está associado a outros dispositivos normativos da legislação civil. No Código Civil brasileiro, por exemplo, pode-se relacionar o venire contra factum proprium ao artigo que trata da função social do contrato e ao artigo que impõe o dever de boa-fé nas relações contratuais, bem como às normas que proíbem atos contraditórios e que gerem prejuízo a outrem, mesmo diante do exercício formal de um direito.

Em síntese, o venire contra factum proprium representa um importante mecanismo de justiça no campo das relações obrigacionais. Consiste na vedação ao comportamento contraditório quando este coloca em risco a confiança que uma parte depositou na conduta da outra. Esse princípio combate a surpresa, o abuso e a instabilidade nas relações jurídicas, promovendo previsibilidade, lealdade e segurança nos vínculos estabelecidos entre os sujeitos de direito.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *