A Extensão da Tutela da Lei Maria da Penha: Análise Dogmática do Sujeito Ativo Feminino
A Lei 11.340/2006, popularmente conhecida como Lei Maria da Penha, transcende a mera proteção física; ela representa uma resposta legislativa a um fenômeno sociológico de dominação. Contudo, mais de uma década e meia após sua vigência, o debate jurídico se refina para além do óbvio. Um dos pontos de maior tensão dogmática e prática para os operadores do Direito reside na identificação técnica do sujeito ativo quando este não figura no papel tradicional do homem, mas sim na figura de outra mulher.
A hermenêutica jurídica contemporânea, afastando-se do determinismo biológico, exige que o advogado criminalista e o familiarista compreendam a lei sob a ótica da sociologia da violência. Não se trata apenas de admitir que “mulher pode agredir mulher”, mas de entender juridicamente como e quando essa agressão atrai o microssistema da Lei Maria da Penha, diferenciando-se de crimes comuns ou da tutela do Estatuto da Pessoa Idosa.
A questão central não é o gênero do agressor *per se*, mas a reprodução de padrões de opressão, hierarquia e subordinação tipicamente patriarcais, exercidos, neste caso, por uma mulher contra outra em situação de vulnerabilidade concreta.
A Complexidade do Conceito de Gênero e a Dinâmica de Poder
O artigo 5º da Lei 11.340/2006 define a violência doméstica como qualquer ação baseada no gênero. Aqui reside a armadilha para o operador desatento: gênero não é sinônimo de sexo biológico, mas uma construção social de poder.
Quando o sujeito ativo é mulher, a incidência da lei não é automática. A doutrina mais densa e a jurisprudência técnica apontam que a aplicação da norma exige a demonstração de que a agressora está mimetizando uma posição de controle e dominação.
- Relações Homoafetivas: A aplicação é mais direta, pois a dinâmica de casal pode reproduzir ciclos de violência, ciúme possessivo e anulação da parceira, independentemente da orientação sexual.
- Relações Familiares (Mães, Filhas, Irmãs): Aqui a análise deve ser cirúrgica. Não basta o vínculo de sangue. É necessário identificar se a agressão decorre de uma relação de poder onde a vítima foi subjugada em sua condição feminina.
O advogado deve estar atento: diferentemente da violência homem-mulher, onde a hipossuficiência tende a ser presumida (in re ipsa) pelos tribunais, nas relações entre mulheres, exige-se frequentemente a prova da vulnerabilidade concreta.
Conflito Aparente de Normas: Lei Maria da Penha vs. Estatuto da Pessoa Idosa
Um cenário recorrente na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) envolve agressões de filhas contra mães idosas. O dilema técnico aqui é o conflito aparente de normas. Aplica-se a Lei 11.340/06 ou o Estatuto da Pessoa Idosa (Lei 10.741/2003)?
A resposta define o rito e a severidade da punição. A tendência dos tribunais superiores é aplicar a Lei Maria da Penha pelo princípio da especialidade e pela vedação expressa aos institutos despenalizadores da Lei 9.099/95.
Contudo, a defesa técnica deve analisar a motivação do delito:
- Se a agressão é puramente patrimonial ou decorrente de um desentendimento pontual sem subjugação de gênero, a tese de defesa deve caminhar para o afastamento da Lei Maria da Penha, buscando a aplicação do Estatuto do Idoso ou do Código Penal comum, que podem ser mais benéficos processualmente.
- Se a agressão envolve humilhação, controle da rotina e violência psicológica baseada na condição da mulher no lar, a competência da Vara de Violência Doméstica se firma.
Para dominar essas distinções e atuar com precisão, o estudo aprofundado em Lei Maria da Penha e o Direito de Família é indispensável para a construção de teses sólidas.
Estratégia Processual: Competência e Desclassificação
Para a advocacia criminal, a definição do sujeito ativo feminino é um campo de batalha estratégico sobre a competência jurisdicional.
Para a Defesa: O objetivo primordial muitas vezes é a desclassificação. Demonstrar que, embora haja parentesco (duas irmãs que brigam, por exemplo), não há motivação de gênero ou vulnerabilidade específica. O sucesso dessa tese desloca a competência da Vara Especializada para o Juizado Especial Criminal (JECrim).
O impacto é imenso: No JECrim, abrem-se as portas para a composição civil, transação penal e suspensão condicional do processo, evitando antecedentes criminais e prisão.
Para a Acusação/Assistência: O ônus argumentativo é maior. É preciso provar que a violência não foi um fato isolado (“briga de vizinhas” ou “desavença familiar”), mas parte de um contexto de dominação contínua. A caracterização correta impede a banalização da agressão como “vias de fato” e garante a proteção integral da vítima.
Medidas Protetivas: Desafios na Exequibilidade
A constatação de que o sujeito ativo pode ser mulher traz desafios práticos na aplicação das Medidas Protetivas de Urgência. O juiz pode determinar o afastamento do lar, mas como executar isso quando a agressora é a filha e única cuidadora de uma mãe acamada? Ou quando a companheira agressora detém a guarda de fato dos filhos?
O advogado deve atuar com realismo jurídico:
- Risco de Prisão: É fundamental alertar a cliente agressora que o descumprimento de medidas protetivas gera a possibilidade de prisão preventiva (art. 313, III, do CPP), mesmo sendo mulher. O gênero não blinda a agressora da segregação cautelar se a ordem judicial for desrespeitada.
- Complexidade Familiar: A defesa ou a acusação devem instruir o processo com elementos que permitam ao juiz decidir sobre a exequibilidade das medidas, muitas vezes demandando pareceres de equipes multidisciplinares.
Aspectos Probatórios e a “Palavra da Vítima”
Embora a jurisprudência consagre a relevância especial da palavra da vítima em crimes clandestinos, quando as partes são do mesmo gênero, o magistrado tende a analisar o conjunto probatório com cautela redobrada.
A simples alegação pode não bastar para sustentar uma condenação na rigorosa Lei Maria da Penha. A prova técnica (pericial), testemunhal e documental (mensagens, áudios) deve demonstrar a assimetria de poder. Diferenciar um conflito familiar ordinário de uma violação de direitos humanos baseada no gênero é o dever do operador do direito diligente.
Conclusão: A Necessidade de Análise Caso a Caso
A aplicação da Lei Maria da Penha com sujeito ativo feminino é uma realidade jurídica consolidada no STJ, mas não é uma aplicação automática ou matemática. Ela depende da verificação da vulnerabilidade concreta e da dinâmica de poder na relação.
Para o advogado, isso significa que não há “casos ganhos” ou “perdidos” de antemão. Há um vasto espaço para a argumentação jurídica sobre a tipicidade da conduta e a competência do juízo. Restringir a lei apenas a homens seria ignorar a realidade da violência, mas aplicá-la indiscriminadamente a qualquer briga entre mulheres seria banalizar o instituto e violar o princípio da legalidade.
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Perguntas e Respostas
1. A Lei Maria da Penha se aplica automaticamente a brigas entre irmãs?
Não automaticamente. Embora seja possível, a acusação deve provar que a agressão não foi apenas um desentendimento comum (crime de menor potencial ofensivo), mas sim uma violência baseada em uma relação de opressão e vulnerabilidade concreta de uma irmã em relação à outra no ambiente doméstico.
2. Qual a principal tese de defesa para uma mulher acusada na Lei Maria da Penha?
A principal tese técnica é a incompetência do juízo da Vara de Violência Doméstica, argumentando a inexistência de motivação de gênero ou vulnerabilidade. O objetivo é desclassificar o crime para a competência do Juizado Especial Criminal (JECrim), onde é possível obter benefícios como a transação penal.
3. Existe conflito entre a Lei Maria da Penha e o Estatuto do Idoso em agressões de filha contra mãe?
Existe um conflito aparente de normas. O STJ tende a aplicar a Lei Maria da Penha devido à sua especialidade e maior proteção, vedando os benefícios da Lei 9.099/95. Contudo, a defesa pode argumentar pela aplicação do Estatuto do Idoso se a motivação do crime não tiver relação com a subjugação do gênero feminino.
4. Uma mulher pode ser presa preventivamente por violência doméstica?
Sim. O artigo 313, inciso III, do CPP permite a decretação de prisão preventiva para garantir a execução de medidas protetivas de urgência, independentemente do gênero do agressor. O descumprimento da ordem judicial é crime autônomo e pode levar ao cárcere.
5. A vulnerabilidade da mulher vítima é sempre presumida quando a agressora é outra mulher?
Não. Diferente da violência cometida por homens (onde a hipossuficiência é frequentemente presumida), nas relações entre mulheres o STJ e a doutrina exigem a demonstração da vulnerabilidade concreta e da dinâmica de dominação para justificar a incidência da lei especial.
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Acesse a lei relacionada em Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha)
Este artigo teve a curadoria da equipe da Legale Educacional e foi escrito utilizando inteligência artificial a partir do seu conteúdo original disponível em https://www.conjur.com.br/2025-dez-12/lei-maria-da-penha-pode-ser-aplicada-para-agressao-entre-mulheres-com-vinculo-familiar/.