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Crime de hermenêutica

Crime de hermenêutica é uma expressão utilizada no contexto jurídico brasileiro para se referir à repressão indevida contra juízes ou operadores do direito por conta de suas atividades interpretativas das normas legais. Essa expressão ganhou notoriedade principalmente a partir das críticas feitas por Rui Barbosa, importante jurista brasileiro do final do século XIX e início do século XX, que rechaçava veementemente a possibilidade de se considerar criminoso um magistrado simplesmente por interpretar a lei de forma diferente daquela esperada por outros operadores do sistema judiciário ou pelo poder político vigente.

No centro da noção de crime de hermenêutica está o entendimento de que a atividade jurisdicional envolve, necessariamente, a interpretação da lei. A linguagem normativa é formulada em termos gerais e abstratos, e cabe ao juiz aplicar essas normas aos casos concretos, o que exige, em maior ou menor grau, uma atuação interpretativa. Como resultado, é natural e esperado que diferentes julgadores possam chegar a conclusões distintas diante dos mesmos dispositivos legais.

A criminalização de uma determinada interpretação jurídica, nos moldes de um crime de hermenêutica, representa uma ameaça à independência funcional do juiz, um princípio essencial ao Estado de Direito e garantido pela Constituição Federal brasileira. Tal princípio assegura que juízes possam julgar os casos submetidos a sua apreciação de forma livre e com base em sua consciência jurídica, sem temer represálias de natureza disciplinar ou criminal em virtude de seu entendimento jurídico, desde que sua conduta se mantenha dentro dos limites legais e éticos.

Rui Barbosa denunciou a tentativa de se punir um juiz por divergências interpretativas como uma violação absurda e autoritária da liberdade jurisdicional. Para ele, admitir o chamado crime de hermenêutica seria admitir que o juiz não tem autonomia para interpretar a lei com base em sua formação e convicção jurídica, mas estaria sempre subordinado a uma versão oficial e única do direito, o que equivale a anular de fato a função judicante e instaurar um regime de arbitrariedade.

No entanto, deve ser feita uma distinção importante. Existe uma diferença clara entre a atuação judicial legítima, ainda que baseada em uma interpretação controvertida das normas, e aquelas situações em que o julgador atua de forma manifesta e intencionalmente desviante da legalidade ou da jurisprudência consolidada, por motivos pessoais, políticos ou escusos. Nestes casos, pode haver responsabilidade por abuso de autoridade, prevaricação ou outras infrações penais tipificadas no ordenamento jurídico. Ainda assim, para que isso se configure, é necessário provar o dolo ou má-fé na conduta do juiz ou operador do direito, e não apenas sua adesão a uma interpretação minoritária ou incomum.

O uso impróprio da ideia de crime de hermenêutica pode também ter efeitos intimidadores, funcionando como forma de coação do Poder Judiciário e das instituições jurídicas em geral, o que prejudica gravemente a imparcialidade e independência que se espera do exercício da função jurisdicional. Essa preocupação permanece atual, especialmente em momentos de tensão entre os poderes da República ou de polarização política, quando decisões judiciais passam a ser alvos de críticas exacerbadas e tentativas de responsabilização penal por parte de setores descontentes com os resultados das decisões.

Assim, o conceito de crime de hermenêutica, embora não esteja positivado no ordenamento jurídico brasileiro como uma figura típica penal, representa uma denúncia teórica e política contra eventuais tentativas de cerceamento da atividade interpretativa dos juízes. Serve como alerta contra o risco de submissão do Judiciário a pressões externas e simboliza a defesa da autonomia e liberdade interpretativa como pilares indispensáveis ao funcionamento da justiça e à preservação do Estado Democrático de Direito.

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