A Tensão Jurídica entre o Direito de Propriedade e as Normas Condominiais na Era Digital
A dinâmica das relações imobiliárias sofreu transformações profundas na última década. O advento da economia compartilhada trouxe à tona um conflito jurídico complexo e fascinante que desafia os operadores do Direito. Trata-se do embate entre o direito fundamental de propriedade, consubstanciado na faculdade de usar, gozar e dispor do bem, e as limitações impostas pelas convenções de condomínio em edifícios estritamente residenciais.
Para o advogado que atua nas áreas cível e imobiliária, a questão transcende a simples leitura de artigos de lei. É necessário compreender a hermenêutica aplicada pelos tribunais superiores, especialmente o Superior Tribunal de Justiça (STJ). A discussão central gira em torno da natureza jurídica da ocupação do imóvel quando intermediada por meios digitais para curtos períodos.
O ponto nevrálgico reside na definição da destinação do imóvel. O Código Civil, em seu artigo 1.336, inciso IV, estabelece que é dever do condômino não alterar a destinação da edificação. Se um prédio é registrado como residencial, a prática de atividades que se assemelhem à exploração hoteleira pode ser considerada um desvio de finalidade. No entanto, a linha que separa a locação por temporada legítima da atividade comercial de hospedagem é tênue e exige análise casuística aprofundada.
Natureza Jurídica: Locação por Temporada versus Hospedagem
A distinção técnica entre locação por temporada e contrato de hospedagem é o primeiro passo para a correta qualificação jurídica do fato. A Lei do Inquilinato (Lei nº 8.245/91) prevê, em seu artigo 48, a locação por temporada como aquela destinada à residência temporária do locatário, por prazo não superior a noventa dias. Nesse cenário, a locação, ainda que breve, mantém o caráter residencial, pois o imóvel serve de moradia, ainda que provisória.
Por outro lado, a Lei Geral do Turismo (Lei nº 11.771/2008) define os meios de hospedagem como empreendimentos ou estabelecimentos destinados a prestar serviços de alojamento temporário mediante contrato. A característica marcante aqui é a prestação de serviços agregados, como limpeza diária, recepção, fornecimento de refeições e alta rotatividade de ocupantes, elementos típicos da atividade empresarial hoteleira.
O conflito surge quando a utilização de unidades autônomas em condomínios residenciais começa a apresentar características híbridas. A simples locação de curto prazo, por si só, não desnatura a finalidade residencial. Contudo, quando essa prática se torna habitual, com alta rotatividade e oferta de serviços, a jurisprudência tende a enxergá-la como uma atividade parahoteleira.
Para compreender as nuances dessa diferenciação e como defender os interesses de condomínios ou proprietários, o aprofundamento acadêmico é essencial. Uma especialização sólida, como a Pós-Graduação em Direito Condominial e Gestão de Novos Condominios, oferece as ferramentas dogmáticas necessárias para enfrentar esses desafios interpretativos que o mercado imobiliário contemporâneo impõe.
A Soberania da Convenção de Condomínio
A jurisprudência atual confere um peso significativo à autonomia da vontade coletiva expressa na convenção de condomínio. O entendimento majoritário, consolidado em julgamentos recentes do STJ, aponta que, na ausência de previsão expressa na convenção permitindo a exploração de locações de curtíssima temporada com características de hospedagem, a assembleia condominial tem o poder de restringir tal prática.
Esse poder regulamentar deriva do dever de garantir o sossego, a salubridade e a segurança dos possuidores, conforme dispõe o artigo 1.336, IV, do Código Civil. A alta rotatividade de pessoas estranhas ao convívio condominial é frequentemente citada como um fator de risco à segurança orgânica do edifício e um elemento perturbador da rotina dos moradores fixos.
É fundamental observar que a restrição não pode aniquilar o direito de propriedade. O condômino mantém o direito de alugar seu imóvel. O que se limita é a modalidade de exploração que desvirtua a finalidade estritamente residencial do edifício. Portanto, a proibição não recai sobre a locação em si, mas sobre a forma como ela é exercida quando assume contornos de atividade comercial hoteleira.
O Critério da Alta Rotatividade e a Atividade Empresarial
Um dos principais critérios utilizados pelos tribunais para identificar o desvio de finalidade é a alta rotatividade (turnover). Em edifícios residenciais, a expectativa é de estabilidade e conhecimento mútuo entre os vizinhos, o que favorece a segurança e a convivência harmônica. A entrada e saída constante de ocupantes temporários, muitas vezes sem o devido controle de identificação, rompe com essa expectativa legítima.
Além da rotatividade, a habitualidade e o intuito de lucro maximizado aproximam a conduta da atividade empresarial. O Direito Empresarial define o empresário como aquele que exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou de serviços. Quando um proprietário disponibiliza seu imóvel de forma sistemática, fracionada em diárias, competindo diretamente com o setor hoteleiro, ele se afasta da figura do locador civil tradicional.
Nesse contexto, a defesa jurídica deve se pautar na análise probatória. Cabe ao condomínio que deseja impedir a prática demonstrar que a utilização da unidade está causando transtornos efetivos ou que a natureza da ocupação é, de fato, comercial. Por outro lado, a defesa do proprietário deve focar na legalidade da locação por temporada e na ausência de serviços hoteleiros que caracterizem a mudança de destinação.
Segurança Jurídica e Alteração da Convenção
Para evitar a judicialização, a medida preventiva mais eficaz é a adequação das normas internas do condomínio. A clareza na redação da convenção é vital para a segurança jurídica de todos os envolvidos. Se a vontade da massa condominial é proibir locações de curtíssima duração, isso deve constar expressamente no regimento, aprovado com o quórum qualificado exigido por lei, geralmente de dois terços dos condôminos para alterações na convenção.
Advogados que assessoram condomínios devem orientar síndicos e administradoras sobre a necessidade de atualizar os regimentos internos para enfrentar essa nova realidade. Cláusulas genéricas sobre “bons costumes” ou “uso residencial” podem não ser suficientes para barrar a atividade, gerando brechas para interpretações divergentes no Judiciário.
A elaboração dessas normas exige técnica apurada. É preciso definir objetivamente o que se entende por “curtíssima temporada”, quais serviços são vedados e quais procedimentos de segurança devem ser adotados para qualquer tipo de locação. A proibição total e irrestrita pode ser contestada como violação desproporcional ao direito de propriedade, razão pela qual a regulamentação restritiva, mas não proibitiva, tende a ser mais aceita.
O Papel do Advogado na Mediação de Conflitos
O papel do advogado especialista vai além do litígio; ele atua na prevenção e na mediação. O conflito entre o desejo de rentabilizar o patrimônio e a necessidade de sossego dos vizinhos é um clássico exemplo de colisão de direitos que exige ponderação. A solução nem sempre é a proibição absoluta, mas sim a criação de regras de convivência que mitiguem os impactos negativos da locação temporária.
Exemplos de regras de mitigação incluem a exigência de cadastro prévio de todos os ocupantes, a limitação do número de pessoas por unidade, a proibição do uso de áreas comuns de lazer (como piscina e academia) por locatários de curtíssima temporada, e a responsabilização objetiva do proprietário por quaisquer danos ou multas causados pelos ocupantes.
A implementação dessas regras deve respeitar os limites legais. Restrições excessivas que inviabilizem o uso da propriedade podem ser anuladas judicialmente. O equilíbrio deve ser buscado com base no princípio da razoabilidade e na função social da propriedade e do contrato.
Impactos no Mercado Imobiliário e Valorização
A permissão ou proibição dessas práticas afeta diretamente o valor de mercado dos imóveis. Edifícios que permitem a exploração flexível tendem a ser mais valorizados por investidores que buscam rentabilidade. Em contrapartida, edifícios que garantem um ambiente estritamente familiar e reservado são mais procurados por quem busca moradia fixa e tranquilidade.
O advogado imobiliarista deve estar atento a esse aspecto econômico ao aconselhar seus clientes na compra de imóveis ou na elaboração de convenções de condomínios em fase de incorporação. A definição clara do perfil do empreendimento desde a sua concepção evita conflitos futuros e atrai o público-alvo correto.
A transparência nas regras condominiais é, portanto, um ativo valioso. O desconhecimento das restrições pode levar investidores a adquirirem unidades com a expectativa de locação flexível, apenas para serem surpreendidos posteriormente com proibições assembleares, gerando prejuízos e demandas indenizatórias.
Considerações sobre a Jurisprudência do STJ
É imperativo destacar que o STJ não proibiu a locação por plataformas digitais em condomínios residenciais de forma absoluta. O que a Corte Superior definiu foi a possibilidade de os condomínios vedarem essa prática caso ela desvirtue a finalidade residencial. Isso significa que, se a convenção for silente, a prática é, em princípio, permitida, mas pode ser contestada se gerar perturbação.
Entretanto, se a convenção expressamente proibir a “locação por temporada” ou a “hospedagem atípica”, essa cláusula tem validade e força vinculante. A decisão da assembleia é soberana, desde que não afronte direitos fundamentais. A Corte entendeu que o direito de propriedade não é absoluto e deve conviver harmonicamente com os direitos de vizinhança.
Essa orientação jurisprudencial reforça a importância da advocacia preventiva. A análise prévia da convenção e das atas de assembleia é etapa obrigatória na due diligence imobiliária. Ignorar esse passo pode resultar em um investimento frustrado ou em um passivo judicial para o condomínio que tenta impor restrições sem o devido amparo normativo interno.
Em suma, a matéria é viva e continua em evolução, acompanhando as mudanças sociais e tecnológicas. O profissional do Direito deve manter-se atualizado não apenas quanto à letra da lei, mas principalmente quanto à sua interpretação dinâmica pelos tribunais, que buscam equilibrar a inovação econômica com a segurança jurídica das relações condominiais.
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Insights sobre o Tema
A questão da hospedagem em condomínios residenciais revela a necessidade de uma advocacia cada vez mais especializada e consultiva. O advogado não deve apenas reagir ao problema, mas antecipar cenários na elaboração de convenções. A tendência é que a “atipicidade” dos contratos se torne a regra, exigindo do jurista uma capacidade analítica para além dos tipos contratuais clássicos do Código Civil. Além disso, o conceito de “residência” está sendo ressignificado, deixando de ser apenas um local de morada fixa para se tornar também um ativo de exploração econômica dinâmica, o que exige uma releitura dos direitos de vizinhança.
Perguntas e Respostas
1. A locação por plataformas digitais é considerada atividade comercial ou residencial?
A classificação depende do modo como é exercida. Se houver alta rotatividade, oferta de serviços (limpeza, recepção) e habitualidade, a jurisprudência tende a classificá-la como atividade comercial ou de hospedagem atípica. Se for apenas a cessão do imóvel por curto prazo, sem serviços agregados, mantém-se a natureza de locação residencial por temporada.
2. O condomínio pode proibir totalmente a locação por temporada?
O condomínio não pode proibir a locação por temporada regida pela Lei do Inquilinato, pois isso feriria o direito de propriedade. No entanto, pode proibir a exploração da unidade como meio de hospedagem (atividade quase hoteleira) se isso desvirtuar a finalidade residencial do edifício, conforme entendimento do STJ.
3. É necessário alterar a convenção do condomínio para restringir essas locações?
Sim, é altamente recomendável. Embora a proibição possa ser arguida com base na destinação do prédio, a existência de uma cláusula expressa na convenção, aprovada pelo quórum de 2/3, confere segurança jurídica e legitimidade à restrição, facilitando a defesa do condomínio em juízo.
4. O inquilino de temporada pode usar as áreas comuns do prédio?
Em regra, o locatário tem o direito de usar as áreas comuns como qualquer morador. Contudo, o condomínio pode estabelecer regras de uso para garantir a segurança e o sossego, desde que não inviabilizem a utilização do imóvel. Restrições desproporcionais podem ser consideradas abusivas.
5. Qual o quórum para permitir ou proibir essa atividade na convenção?
Para alterar a convenção de condomínio e incluir uma proibição ou permissão expressa sobre a modalidade de locação ou hospedagem, o Código Civil exige o quórum qualificado de dois terços dos votos dos condôminos (art. 1.351).
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Acesse a lei relacionada em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406compilada.htm#art1351
Este artigo teve a curadoria da equipe da Legale Educacional e foi escrito utilizando inteligência artificial a partir do seu conteúdo original disponível em https://www.conjur.com.br/2025-dez-16/hospedagem-por-plataformas-digitais-breve-panorama-jurisprudencial/.