A Litispendência e a Blindagem do Ne Bis in Idem: Uma Análise Técnica e Defensiva
A eficácia da prestação jurisdicional não pode custar o sacrifício das garantias individuais. Dentre os institutos que protegem o cidadão contra o excesso punitivo, a litispendência transcende a mera organização burocrática para se firmar como uma barreira intransponível ao abuso do poder de perseguir. No âmbito do Direito Processual Penal, ela atua como um pressuposto processual negativo ou extrínseco: sua existência impede validamente o desenvolvimento da relação processual.
Contudo, a análise da litispendência na advocacia criminal de alto nível exige abandonar simplificações teóricas. Não se trata apenas de evitar o desperdício de recursos públicos, mas de impedir a violação do princípio do ne bis in idem. A existência de uma ação penal anterior, ainda em curso e versando sobre o mesmo fato histórico, deve paralisar e extinguir qualquer tentativa superveniente de nova persecução.
A doutrina é unânime: o Estado-Juiz não pode ser provocado repetidamente para resolver a mesma lide penal. Porém, a prática forense revela armadilhas que exigem do advogado um olhar clínico sobre a imputação fática, muito além da superficialidade dos “elementos da ação” importados do Processo Civil.
Superando o Civilismo: Do “Pedido” ao Idem Factum
Uma das maiores falhas na formação do penalista é a importação acrítica da “tríplice identidade” (partes, causa de pedir e pedido) do Código de Processo Civil. No Processo Penal, essa régua é imprecisa e perigosa.
No cível, o pedido vincula o juiz. No penal, o réu se defende dos fatos, não da capitulação jurídica. O conceito de “pedido” no processo penal é fluido; em última análise, é o pedido genérico de condenação. Portanto, a análise da litispendência deve focar estritamente na identidade do objeto do processo, ou seja, no fato naturalístico (o acontecimento histórico no tempo e no espaço).
- Causa de Pedir: Não deve ser analisada sob a ótica da capitulação legal (artigos de lei). Se o Ministério Público denuncia por roubo em um processo e, posteriormente, narra a mesma subtração com violência em outra denúncia, classificando-a como extorsão, há litispendência. O rótulo jurídico muda, mas o fato histórico (idem factum) é o mesmo.
- O Perigo da Emendatio Libelli: Como o juiz pode dar ao fato definição jurídica diversa na sentença (art. 383 do CPP), permitir dois processos sobre o mesmo fato com capitulações diferentes é abrir a porta para sentenças contraditórias sobre a mesma realidade fática.
Para a prática forense de excelência, debatida em nossa Pós-Graduação em Direito Penal e Processo Penal, o advogado deve demonstrar que a imputação fática é idêntica, independentemente da roupa jurídica que a acusação tentou vestir.
Nuances na Identidade de Partes
A verificação das partes também exige refinamento técnico:
- Polo Passivo (Réu): A identidade deve ser física e absoluta. O réu deve ser a mesma pessoa.
- Polo Ativo (Acusação): A máxima de que o “Ministério Público é uno” esconde complexidades. Deve-se atentar para a Ação Penal Privada Subsidiária da Pública. Se o MP denuncia em um juízo e a vítima, alegando inércia, oferece queixa subsidiária em outro juízo sobre o mesmo fato, configura-se litispendência (e potencial ilegitimidade). A duplicidade de polos ativos sobre o mesmo fato gera nulidade absoluta.
A Corrida pela Competência: Prevenção e Técnica
Identificar a duplicidade é apenas o primeiro passo. O advogado deve saber qual processo deve sobreviver e qual deve ser extinto. A regra geral é a prevenção, mas a aplicação do Artigo 83 do Código de Processo Penal exige precisão cirúrgica, muitas vezes ignorada:
Se processos correm em juízos de igual competência territorial, a prevenção se firma pela distribuição. Contudo, se a competência territorial for diversa, a prevenção se dá pelo primeiro ato decisório (o despacho, ainda que anterior ao oferecimento da denúncia, como em medidas cautelares).
Não basta alegar “citação válida primeiro” (critério civilista). No crime, a cronologia dos atos jurisdicionais (recebimento da denúncia, decretação de cautelares) define o juízo prevento. O advogado deve cronometrar os autos: o processo que nasceu depois (não prevento) é o que deve ser fulminado pela exceção de litispendência.
O Desafio dos Crimes Modernos: “Salami Slicing”
O cenário mais complexo da litispendência atual reside nos crimes econômicos, como Lavagem de Dinheiro e Organização Criminosa. Uma prática comum da acusação é o “fatiamento” (salami slicing) da denúncia: o MP oferece múltiplas acusações fragmentando um contexto fático contínuo.
Por exemplo: diversas operações de lavagem de dinheiro dentro de um mesmo ciclo delituoso podem ser tratadas como crimes autônomos em processos distintos pelo MP, visando o cúmulo material de penas. A defesa técnica deve arguir a litispendência (ou o reconhecimento da continuidade delitiva/crime único) demonstrando que, embora os atos sejam múltiplos, o contexto fático e o dolo global são únicos.
Litispendência Internacional e Ne Bis In Idem
A vedação à litispendência decorre do princípio do ne bis in idem, que possui status supraconstitucional (Pacto de São José da Costa Rica, Art. 8º, 4). O Estado não pode processar ou punir alguém duas vezes pelo mesmo fato.
Isso levanta a questão da Litispendência Internacional. Se o réu é processado pelo mesmo fato no Brasil e no exterior (ex: tráfico internacional), a jurisprudência brasileira ainda é resistente em reconhecer a litispendência automaticamente sem a homologação de sentença estrangeira, salvo em casos específicos previstos em tratados. Contudo, a defesa deve invocar a convenção de direitos humanos para impedir a dupla persecução, um tema de vanguarda na advocacia criminal internacional.
Conflito de Coisas Julgadas: A Supremacia do Favor Rei
Diferente da litispendência (processos em curso), a coisa julgada impede a rediscussão de causa finda. Mas o que ocorre se, por erro judiciário, o réu for julgado duas vezes e houver duas sentenças transitadas em julgado?
A resposta técnica rompe com a lógica da segurança jurídica tradicional: prevalece a decisão mais favorável ao réu (Favor Rei), independentemente da cronologia. Se o réu foi condenado no primeiro processo e absolvido no segundo, a segunda decisão deve prevalecer, anulando-se a primeira via Revisão Criminal ou Habeas Corpus. A liberdade e a justiça material preponderam sobre a formalidade do trânsito em julgado da condenação.
Procedimento e Estratégia
A exceção de litispendência (Art. 95, III, CPP) deve ser arguida preferencialmente na resposta à acusação, processada em apartado. Embora seja matéria de ordem pública (não preclui), a estratégia defensiva exige arguição imediata para estancar o sangramento de recursos e a estigmatização do réu.
O reconhecimento da litispendência gera a anulação do segundo processo ab initio. Provas colhidas exclusivamente no processo anulado são, em regra, descartadas, salvo se irrepetíveis e introduzidas no processo remanescente sob o crivo do contraditório.
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Insights para a Advocacia de Combate
- Identidade de Fatos > Identidade de Artigos: Nunca confie na capitulação da denúncia. Compare a narrativa fática (verbos, datas, locais). Se a história é a mesma, há litispendência.
- Atenção à Prevenção: Estude a fundo os artigos 70 a 83 do CPP. Saber exatamente qual juiz tornou-se prevento primeiro é a chave para determinar qual processo deve ser extinto.
- Conexão vs. Litispendência: Na conexão, somam-se processos diferentes para julgamento único. Na litispendência, mata-se um processo repetido. Não confunda os pedidos.
- O Princípio da Incoercibilidade da Coisa Julgada Injusta: No conflito entre duas sentenças definitivas, a mais benéfica sempre deve prevalecer.
Perguntas e Respostas Frequentes (Nível Avançado)
1. O que ocorre no conflito entre duas Coisas Julgadas (uma condenatória e uma absolutória)?
Prevalece a decisão mais favorável ao réu (princípio do favor rei), independentemente de qual transitou em julgado primeiro. A segurança jurídica cede espaço à justiça material e à liberdade. A defesa deve manejar Revisão Criminal ou HC para desconstituir a condenação, mesmo que ela tenha ocorrido cronologicamente antes da absolvição.
2. Como funciona a litispendência em crimes permanentes ou continuados que tramitam em comarcas diferentes?
É um cenário complexo. Se houver prevenção (art. 83 CPP), o juízo que primeiro realizou ato decisório atrai a competência. A defesa deve estar atenta para evitar que o “fatiamento” da continuidade delitiva gere múltiplos processos. O correto é a unificação (conexão/continência) ou o reconhecimento da litispendência se a imputação abranger todo o período delituoso em ambas as denúncias.
3. A mudança na qualificação jurídica do crime afasta a litispendência?
Não. O Ministério Público não pode renovar a persecução apenas alterando a tipificação (ex: de estelionato para apropriação indébita) se a narrativa fática (causa petendi próxima) for a mesma. O réu defende-se dos fatos.
4. Cabe litispendência entre Ação Penal e Improbidade Administrativa?
Em regra, não, devido à independência das instâncias (civil, penal e administrativa). O mesmo fato pode gerar sanções diferentes em esferas diferentes. Contudo, a nova Lei de Improbidade e entendimentos recentes sobre o ne bis in idem sancionador têm aberto discussões sobre o aproveitamento de provas e a comunicabilidade de absolvições que negam a autoria ou o fato.
5. Qual o momento exato da prevenção para fins de litispendência?
Depende da natureza da competência. Se for competência territorial distinta, a prevenção ocorre no primeiro ato decisório (despacho liminar, decretação de cautelar). Se for mesma competência territorial (varas da mesma comarca), a prevenção se dá pela distribuição (Art. 75, parágrafo único e Art. 83 do CPP).
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Acesse a lei relacionada em Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 – Código de Processo Penal
Este artigo teve a curadoria da equipe da Legale Educacional e foi escrito utilizando inteligência artificial a partir do seu conteúdo original disponível em https://www.conjur.com.br/2025-dez-06/juiz-reconhece-litispendencia-e-anula-acao-penal-em-ms/.