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Furto famélico

Furto famélico é uma expressão utilizada no campo do Direito Penal para designar situações em que o agente pratica o crime de furto motivado por necessidade extrema de subsistência, como a fome ou a privação de recursos básicos para si ou para sua família. Trata-se de uma hipótese que desafia os limites da aplicação da norma penal diante de circunstâncias que envolvem a dignidade humana, funcionando como fundamento ético e jurídico para reavaliar a resposta do sistema de justiça criminal a determinados comportamentos socialmente compreensíveis, ainda que formalmente típicos.

Do ponto de vista jurídico, o furto famélico está relacionado à análise da tipicidade material da conduta. Embora o Código Penal brasileiro estabeleça, em seu artigo 155, que o furto caracteriza-se pela subtração de coisa alheia móvel com a intenção de assenhoramento definitivo, há situações em que a infração à norma penal não atinge de maneira significativa o bem jurídico protegido, que é o patrimônio. Nesses casos, os tribunais podem entender que não há relevância suficiente na lesão ao bem jurídico para justificar a imposição de uma pena criminal, sendo possível reconhecer a atipicidade material da conduta.

Em outras palavras, embora o furto famélico seja formalmente um crime, pode não haver relevância penal se a subtração de objeto teve como motivação única e imediata a sobrevivência. Dessa forma, entende-se que não há justa razão para o Estado intervir com o aparato punitivo, já que o princípio da intervenção mínima do Direito Penal recomenda sua atuação apenas quando estritamente necessária. Isso evita o uso exacerbado da punição em detrimento dos direitos fundamentais, especialmente em situações em que há contexto de vulnerabilidade social extrema.

Além da atipicidade material, também é possível sustentar que o furto famélico se enquadra em uma excludente de ilicitude, configurando estado de necessidade. Nesse caso, o agente pratica o fato típico e ilícito, mas que é justificado em razão de uma situação emergencial que colocaria em risco um bem jurídico de maior valor, como a vida. O artigo 24 do Código Penal prevê que não há crime quando o agente pratica o fato para salvar um bem próprio ou de terceiro, cuja preservação não poderia ser obtida de outra maneira, diante de perigo atual e inevitável. Assim, o furto famélico pode ser compreendido como uma conduta justificada se for a única forma de proteger a vida e a saúde de quem sofre privação.

Na prática, os tribunais brasileiros já enfrentaram diferentes casos que envolvem o furto famélico. São comuns decisões que absolvem os réus com base em fundamentos como o princípio da insignificância, a ausência de dolo, a inexigibilidade de conduta diversa, a atipicidade material ou o estado de necessidade. Um exemplo clássico envolve situações em que pessoas subtraem pequenos objetos como alimentos, produtos de higiene ou medicamentos, de estabelecimentos comerciais, em contextos de miséria extrema. Nesses julgados, os tribunais costumam reconhecer que a atuação penal nessas circunstâncias viola o princípio da dignidade humana e representa um uso desproporcional do Direito Penal.

Contudo, o reconhecimento do furto famélico como excludente de ilicitude ou causa de atipicidade requer análise criteriosa do caso concreto. Não basta alegar a fome ou a necessidade. É preciso demonstrar que a conduta foi motivada única e exclusivamente pela busca imediata pela sobrevivência, sem alternativa razoável e sem exceder os limites da proporcionalidade. Caso contrário, a justificativa pode ser usada como escudo para práticas criminosas que não possuem amparo na condição de extrema necessidade.

Portanto, o furto famélico é mais do que uma figura jurídica, trata-se de um ponto de intersecção entre o Direito Penal, os direitos fundamentais e a consciência moral da sociedade. Reflete a necessidade de o sistema jurídico interpretar a norma penal à luz das situações humanas concretas, reafirmando o compromisso do Estado com os valores da proporcionalidade, razoabilidade e proteção da dignidade da pessoa humana.

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