A intersecção entre a responsabilidade civil do Estado e a proteção aos direitos da personalidade representa um dos campos mais tensos e complexos do Direito contemporâneo. A atuação dos agentes públicos no contencioso judicial não se resume à defesa técnica dos interesses estatais; ela é, em essência, um ato administrativo que deve obediência estrita aos preceitos constitucionais. Quando o Estado, através de seus advogados públicos, utiliza linguagem discriminatória ou ignora deliberadamente a identidade de gênero de uma parte, ultrapassa-se a fronteira da imunidade profissional, adentrando a esfera do ilícito civil e da improbidade administrativa.
A evolução da teoria da responsabilidade civil no Brasil, consolidada no artigo 37, parágrafo 6º da Constituição Federal de 1988, estabelece a responsabilidade objetiva do Estado. Contudo, a aplicação prática dessa teoria em casos de “delitos de hermenêutica” ou ofensas processuais exige uma análise jurídica que vá além do básico, enfrentando as nuances entre o livre exercício da advocacia e o abuso de direito.
A Tênue Linha entre Animus Defendendi e Animus Injuriandi
Muitos profissionais do Direito limitam a visão de “conduta administrativa” a atos físicos ou decisões burocráticas. No entanto, a peça processual — contestação, recurso ou parecer — é um ato administrativo em sentido amplo. O advogado público é a voz do Estado nos autos.
A imunidade profissional prevista no artigo 133 da Constituição protege a liberdade de argumentação e a combatividade (animus defendendi), mas não é um salvo-conduto absoluto. O desafio prático reside em identificar o ponto de ruptura: onde termina a defesa vigorosa e começa o discurso de ódio ou a litigância de má-fé?
No contexto da identidade de gênero, o STF já pacificou o entendimento sobre a proteção fundamental dessa categoria. Assim, o desrespeito ao nome social ou o uso de pronomes incompatíveis não pode ser escusado sob o manto da “liberdade de tese”. Trata-se, tecnicamente, de uma negativa de vigência a direitos fundamentais já reconhecidos. O profissional que insiste nessa conduta não está apenas exercendo defesa; está atraindo para o Estado o risco de condenação por dano moral e, processualmente, pode incorrer nas sanções de litigância de má-fé (Art. 80 do CPC).
Para compreender a gravidade jurídica dessa conduta e a equiparação feita pelo STF na ADO 26, é essencial dominar o arcabouço legal que conecta o ilícito civil ao penal. O estudo aprofundado sobre a Lei de Preconceito Racial fornece os subsídios necessários para que o advogado identifique quando a peça processual transborda para o ilícito penal equiparado.
O Dano Moral: Cautela com a Tese do In Re Ipsa
Embora parte da doutrina e da jurisprudência de cúpula inclinem-se para o reconhecimento do dano in re ipsa (presumido) em casos de discriminação grave, o advogado diligente deve evitar o excesso de otimismo. O “chão de fábrica” do Judiciário — as instâncias ordinárias — muitas vezes ainda adota posturas conservadoras, classificando tais episódios como “mero aborrecimento”.
Portanto, na prática forense, não se deve confiar cegamente na presunção do dano. A instrução probatória deve ser robusta:
- Prova do contexto: Demonstrar que a linguagem utilizada era desnecessária para o deslinde técnico da causa.
- Prova do impacto: Laudos psicológicos ou testemunhas que atestem o abalo sofrido pela vítima ao ver sua identidade negada em um documento oficial do Estado.
A fixação do quantum indenizatório deve observar o caráter pedagógico, visando compelir a Administração Pública a treinar seus agentes e adequar sua atuação aos parâmetros de urbanidade e respeito à dignidade humana.
A Ação de Regresso e o Mito da Independência Funcional
A responsabilidade do Estado é objetiva perante a vítima, mas o ente público possui o dever de regresso contra o agente causador do dano em casos de dolo ou culpa. Aqui reside um dos pontos mais sensíveis da matéria. Na teoria, o regresso é obrigatório; na prática, enfrenta a barreira do corporativismo e da tese da “independência funcional”.
Advogados públicos frequentemente alegam que não podem ser punidos por suas opiniões jurídicas. Contudo, é preciso diferenciar tese jurídica de ofensa pessoal.
- O desconhecimento de jurisprudência vinculante do STF por um procurador de alto nível técnico pode configurar negligência grave (imperícia).
- A insistência em termos pejorativos, sem utilidade processual, pode configurar dolo eventual.
Além da responsabilidade civil, a conduta discriminatória fere o princípio da eficiência. Insistir em teses que negam direitos de gênero já pacificados gera litígios desnecessários, recursos protelatórios e condenações que oneram o erário. Sob a ótica da Análise Econômica do Direito, a discriminação é ineficiente e custosa para o contribuinte.
Estratégia Processual: Além da Indenização
Para a vítima, a via judicial adequada é a ação indenizatória contra o ente público (Tema 940 do STF). Processar diretamente o agente público é um erro técnico que levará à extinção do feito por ilegitimidade passiva.
O advogado da vítima deve atuar em duas frentes:
- Nos próprios autos da ofensa: Requerer a aplicação de multa por litigância de má-fé e a supressão das expressões ofensivas (riscadura), com base no dever de urbanidade (Art. 78 do CPC).
- Em ação autônoma: Buscar a reparação civil contra o Estado, fundamentando-se na responsabilidade objetiva e na violação dos direitos da personalidade.
O reconhecimento de que a técnica jurídica não pode estar dissociada da realidade social e dos avanços em direitos humanos é o que separa a advocacia de excelência da prática temerária. A ignorância sobre temas de diversidade não é apenas uma falha social, mas um risco profissional severo.
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Insights sobre o tema
- Limites da Imunidade: A imunidade do advogado não cobre o discurso de ódio ou a negação de direitos fundamentais já pacificados, podendo configurar abuso de direito.
- Risco do In Re Ipsa: Apesar da jurisprudência favorável nos tribunais superiores, a advocacia de resultados deve instruir o processo com provas concretas do abalo moral para vencer resistências em instâncias conservadoras.
- Eficiência Administrativa: A litigância baseada em preconceito fere o princípio da eficiência, pois gera custos evitáveis ao erário através de condenações e sucumbências.
- Litigância de Má-fé: Antes ou concomitantemente à ação indenizatória, deve-se combater a ofensa dentro do próprio processo onde ela ocorreu, pedindo a riscadura dos termos e multas processuais.
- Responsabilidade Subjetiva do Agente: Na ação de regresso, o Estado deve superar a tese da independência funcional demonstrando que a ofensa não constitui tese jurídica, mas sim imperícia ou dolo do servidor.
Perguntas e Respostas
1. A ofensa proferida em peça judicial gera indenização automática?
Juridicamente, a tendência é considerar o dano presumido (in re ipsa) dada a gravidade da violação à dignidade. Contudo, na prática forense, recomenda-se fortemente a produção de provas do impacto psicológico e social para garantir o êxito da demanda, prevenindo-se contra o entendimento de “mero aborrecimento” ainda presente em alguns juízos.
2. O advogado público pode alegar “independência funcional” para evitar a ação de regresso?
É uma defesa comum, mas tecnicamente frágil quando há violação de direitos fundamentais claros. A independência funcional protege a livre convicção jurídica, mas não autoriza o desconhecimento de jurisprudência vinculante ou a prática de atos discriminatórios que nada acrescentam à defesa técnica do Estado.
3. Qual a medida processual imediata ao se deparar com termos discriminatórios em uma contestação?
O advogado deve peticionar nos próprios autos requerendo a aplicação do artigo 78 do CPC (proibição de expressões ofensivas), solicitando que o juiz determine a riscadura das palavras e a aplicação de multa por litigância de má-fé, além de extrair cópias para os órgãos correicionais competentes.
4. Por que não processar diretamente o Procurador que assinou a peça?
Devido à tese da “dupla garantia” consagrada pelo STF (Tema 940). O cidadão deve processar o Estado (que possui solvência garantida). O agente público só responde perante o Estado, em ação regressiva, se comprovada sua culpa ou dolo.
5. O uso de nome civil em vez do nome social configura ilícito?
Sim. Após as decisões do STF sobre a matéria e diversas normativas do CNJ, o tratamento pelo nome social é um direito subjetivo da parte. A insistência do Estado em utilizar o nome de registro (quando já informado o nome social) é uma negativa de reconhecimento da personalidade, gerando dever de indenizar.
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Acesse a lei relacionada em Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989
Este artigo teve a curadoria da equipe da Legale Educacional e foi escrito utilizando inteligência artificial a partir do seu conteúdo original disponível em https://www.conjur.com.br/2025-dez-09/pge-sp-deve-indenizar-por-usar-linguagem-transfobica-em-acao-judicial/.